sexta-feira, 8 de maio de 2020

O Covid 19 e as aves da nossa cidade: os palcos dos pequenos cantores*


Neste tempo de pandemia, muito confuso, em que somos obrigados a permanecer a maior parte do tempo confinados a quatro paredes, sabe sempre bem furá-las, colocando a cabeça fora da janela, debruçando-nos a uma varanda ou se tal for possível saindo pela porta que dá para o terraço.

É nalgum destes momentos em que espreitamos o ambiente exterior que damos conta que na nossa rua sobrevoam regularmente umas “aves” estranhas, que em vez de asas têm umas ventoinhas e em vez de cantarem, piarem ou arrulharem reproduzem sons de vozes humanas, compassadas, recordando-nos a obrigação de nos continuarmos a contentar com estas formas sensatas de oxigenar a alma.








A Primavera vai decorrendo normalmente, com dias de Sol e de chuva, com dias de vento e de tempo ameno, e como se viu nos apontamentos anteriores, com as aves urbanas envolvidas activamente numa nova época de criação.

Nesses relatos a que me refiro constatou-se como certas espécies de aves, facilmente visíveis pela sua grande envergadura ou pelo grande número de indivíduos avistados juntos, tais como a cegonha-branca, o pombo-doméstico, a rola-turca, o milhafre-preto e a águia-calçada, têm levado a cabo uma vida muito preenchida. 

Mas tal como estas, existe um conjunto diversificado de outras aves, de dimensões mais reduzidas, cuja presença é mais facilmente reconhecida pelos cantos do que pelos seus registos visuais. Refiro-me concretamente aos pequenos pássaros, que em termos de classificação científica constituem o denominado grupo dos passeriformes.



O Sol raia já sobre os telhados mais altos da cidade. A manhã está a acordar ao som de muitos pequenos cantores.




Os protagonistas do nosso último texto já se encontram em actividade. 

Um dos mais mediáticos poleiros documentados nesse texto, as bem antigas mas ainda funcionais antenas de radiodifusão, vão ser transformadas nos palcos dos palcos, bem altos e destacados…  




Pois bem, um dos primeiros arautos do novo dia é o rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros), uma ave insectívora por excelência. 















Esta pequena ave que, fazendo jus ao seu nome, é preta no macho e castanha clara na fêmea, apresenta uma cauda avermelhada e tem o hábito matinal de escolher um palco bem alto de onde saúda as redondezas com um conjunto de notas assobiadas, antes de se lançar sobre as suas presas.


Outro madrugador da cidade é o chamariz (Serinus serinus). Este é um dos incansáveis cantores que adora este tipo de palcos, não se ausentando deles por muito tempo. 





Adaptado a este ambiente de grande exposição perante o mundo que o rodeia, canta, canta, canta, com trinados insistentes, chamando sobre si a atenção de qualquer observador que esteja cá por baixo.

Com uma tonalidade geral amarelada, mais acentuada nas partes inferiores, distingue-se de outros primos por apresentar as faces e o dorso com riscas escuras. Do alto do seu poleiro desce frequentemente ao solo para procurar os grãos que tanto aprecia.



Um primo seu, mais robusto em estatura e na intensidade do canto, o verdilhão-comum (Carduelis chloris), disputa-lhe também o alto poleiro.



Esta ave distingue-se muito bem pelo bico grosso e pelo tom geral esverdeado, com as rémiges primárias e as rectrizes laterais tingidas de amarelo vivo.

Tal como outras aves granívoras também inclui insectos na sua dieta alimentar, sobretudo durante o período da Primavera e do Verão, quando estes são muito abundantes por todo o lado.


Dá-se o caso que, por vezes, algumas destas diferentes espécies de pequenas aves se associam em classe de canto conjunto e dá gosto, então, ouvi-las no seu alto palco. 



Como elas cantam!



Os parques da cidade nesta altura do ano encontram-se verdes e fartos em ramagens, como em nenhuma outra época. As árvores de maior estatura, como plátanos (Platanus sp.), choupos (Populus sp.) e amieiros (Alnus glutinosa), localizadas nas margens do rio Cáster formam um dossel extremamente denso.



Em redor deste arvoredo proliferam variados arbustos, sebes e outras árvores de menor porte, que formam múltiplos habitats para a avifauna. Toda esta massa vegetal abriga, assim, vários pequenos ninhos de pássaros … são verdadeiras incubadoras para a avifauna da cidade.


















Mais ainda. 

Além dos frutos e bagas que as árvores começam a formar e que irão servir de alimento para todas as espécies granívoras…



… na sua rápida maturação, algumas, como o choupo-branco (Populus alba) vão libertando para o meio envolvente as penugens esbranquiçadas que recobrem os rebentos do ano. Este sedoso e térmico material orgânico é aproveitado pelos pássaros para forrarem os seus pequenos ninhos.




O prado de herbáceas bem crescidas é o palco onde os pequenos cantores, saltitando ou correndo, meio escondidos entre aquelas, procuram o alimento tão necessário.

Múltiplas flores coloridas espalham-se pelo prado, dando uma graça especial ao meio….





























….. e atraindo diversos insectos, entre os quais sobressaem as sempre delicadas borboletas.













É sobretudo de manhã e ao entardecer, momentos em que as temperaturas são mais amenas, que as aves se movimentam também mais, à procura de alimento para sustentar as fêmeas que estão no choco e em data posterior os filhotes recém-nascidos.


Um outro pequeno e discreto cantor da fauna de uma cidade e que tanto pode ser encontrado paredes meias com as habitações, como nos muitos arbustos espalhados pelos parques, é o atraente pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula).



Pintado de laranja desde a testa ao término do peito, deixa-se observar pousado nalgum ramo, cantando, de início sempre em tons mais agudos. 

No solo progride com pequenos saltos sempre em busca de insectos, minhocas, bagas ou caracóis. Sempre que parado assume uma postura direita, que logo evolui para outra agitada, quer da cauda quer da cabeça, para cima e para baixo.


O rio Cáster, serpenteando o parque urbano ovarense constitui uma vitamina fulcral para a biodiversidade deste ecossistema urbano.



Além dos refúgios disponibilizados pela sua vegetação ripícola, pela ampla infiltração das suas águas no subsolo envolvente e pelo microclima gerado, as águas do rio têm vida.

A qualidade da vida do rio é promovida pela boa oxigenação das suas águas, graças aos vários açudes existentes no curso do rio... 



... bem como, aos velhos e recuperados moinhos cujo movimento das pás promovem igual efeito.


















Muita vida tem o rio, de facto. 

São vários os seres, animais e vegetais, macroscópicos e microscópicos, que nele vivem e que constituem os primeiros patamares das cadeias alimentares do parque. 

Entre os animais que vivem no rio destacam-se alguns insectos, pela importância que representam para os nossos pequenos cantores. E entre os insectos destacam-se em particular os alfaiates (Gerris lacustris).




Com as suas longas e adaptadas patas estes animais de aparência frágil são verdadeiros predadores. Alimentam-se de outros insectos sendo presas habituais dos aracnídeos. Estes, por sua vez, são capturadas pelos pássaros. 

E assim, num instante, deparamo-nos com um conjunto de quatro níveis tróficos numa das muitas variadíssimas cadeias alimentares existentes no parque. 



Voltemos aos pequenos cantores urbanos, que chamam por nós, e debrucemo-nos sobre aquele que provavelmente poderá ser encarado como o rei dos parques e jardins da cidade. O melro-preto (Turdus merula).








Estas familiares aves, possuidoras de um reportório sonoro variado, são dos primeiros cantores na alvorada e dos últimos a calarem-se no crepúsculo.

A maior parte das vezes são observados sozinhos, em curtas corridas no solo estancando de seguida, para voltarem a correr e parar de novo, as vezes que forem necessárias até alcançarem o que procuram.

Então, com seus bicos amarelos, muito vivo nos machos, capturam com fortes movimentos da cabeça, suculentas lagartas, minhocas, insectos e bagas.



Estes rituais leva-os frequentemente até às proximidades do rio….



onde por entre a vegetação ribeirinha da margem arenosa encontram sempre algo para alimento.



Terminado o banquete voam para um ramo mais além, para um telhado ou para o cimo de algum muro, de onde, de forma compassada, lançam no ar o seu metálico e flauteado assobio.




No solo também se avistam com frequência as alvi-negras alvéolas-brancas-comuns (Motacilla alba alba) que, de porte elegante e passo rápido e miudinho, procuram também insectos, tanto por entre a vegetação herbácea, como no asfalto aquecido para onde aqueles são atraídos.



É por este último motivo que a vemos frequentemente a inspeccionar superfícies facilmente aquecidas, como terraços, varandins, muros e pequenos blocos rochosos que salpicam os terrenos.




Os dias solarengos estão para mudar. Os altos cirros e a mudança no rumo do vento anunciam alguma chuva ….



e ela chega, devagarinho de início, pingo atrás de pingo, salpicando tudo de mansinho….



…. mas rapidamente engrossa e todos os seres viventes que usufruem dos parques, de uma ou de outra forma,  têm de procurar abrigo.



Estas tormentas, não sendo demoradas, são suficientes para darem um ar novo aos parques e jardins da cidade revigorando as teias alimentares do ecossistema.




Os pássaros dos parques agradecem esta abençoada água…


… e é assim que vemos os elementos de um pequeno grupo de ágeis chapins-reais (Parus major), emitindo seus cantos suavíssimos enquanto saltitam em redor dos ramos mais altos de um Choupo procurando com seus bicos curtos, os pequenos insectos, aranhas e larvas alojados por entre as folhas e ramagens dos mesmos.




Ouvem-se e veem-se também pardais-comuns (Passer domesticus), vários, em grupos ruidosos, encafuados por entre a vegetação herbácea, onde procuram com o seu forte bico cónico pequenos grãos, sementes, detritos e nesta altura do ano também os abundantes insectos.









Em dias de calor é frequente estas aves banharem-se demoradamente em recantos do rio, de águas remansosas.




Após o banho e como apátridas que são, rapidamente levantam voo para uma árvore pequena e pouco enroupada, para logo a seguir se posicionarem num alto ramo de uma árvore bem mais avantajada e pouco depois voarem para o caminho ou o muro de algum quintal próximo.



Outros, com diferentes preocupações, voam frequentemente para os ninhos…





A história da vida dos cantores dos parques e jardins da cidade não poderia esquecer aquela espécie que, pela abundância e adaptação ecológica, poderá ser considerada como a rainha dos mesmos. A pêga-rabuda (Pica pica).

Apresentando uma cauda do tamanho do seu corpo, que a torna uma das espécies mais características de toda a avifauna europeia, esta ave começa por despertar a nossa atenção quando pousada num alto poleiro logo ao princípio do dia.




Ali, com o seu par pousado em local próximo, começa a vocalizar uma série de sons roucos, que nunca sabemos como exprimir, se de riso ou de choro.





Não demorando muito, voam ambos directos para o solo, onde aos saltos dão início à procura de sustento. Insectos, grãos, cereais, vermes, bagas, frutos e até cadáveres de animais jazidos no solo, tudo aproveitam. Também preda sobre outras aves, nomeadamente roubando ovos e crias.






No seu périplo comezinho acabam por invadir os caminhos de asfalto e os blocos rochosos disseminados pelo campo, tornando-se assim muito visíveis e aumentando as probabilidades de podermos apreciar o bonito tom azul-verde metálico da sua plumagem.

  

Não sendo uma ave tímida é bastante cautelosa, levantando voo prontamente, caso o seu espaço de conforto seja violado. Do cimo da árvore para onde voaram voltam a fazer-se ouvir com o seu ruidoso palrar.






A tarde vai-se aproximando do fim e os sons das aves canoras começam a deixar de se fazer ouvir nos parques e jardins da cidade.

Já não há tempo suficiente para falar de outros tantos cantores, como o atraente tentilhão (Fringilla coelebs), a pequenina carriça (Troglodytes troglodytes), a melodiosa toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapila) ou o esquivo gaio-comum (Garrulus glandarius). 

Ficarão para outra ocasião.



A noite, entretanto, chega rápido. Enquanto a cidade se prepara para adormecer, no parque entram em cena novos cantores.





Desde o crepúsculo que é comum ouvir-se o canto monótono do pequeno mocho-de-orelhas (Otus scops), pousado algures, camuflado num ramo de um plátano.

Esta ave de rapina nocturna, que se aproxima bastante das habitações e que inclusivamente se deixa por vezes observar durante o dia, está a descansar um pouco mais, enquanto aguarda pelo momento em que se irá lançar em mais uma jornada de caça aos insectos nocturnos.

E voltará mais vezes ao poleiro de onde continuará a embalar a noite dos parques de Ovar.

E é, desta forma, que se constata que o canto das aves nem de noite se ausentam da cidade; apenas se substituem.




*este texto, só agora publicado, foi produzido durante o estado de emergência imposto pela pandemia do Covid-19, em total respeito pelo cumprimento das restrições em vigor.



2 comentários:

Mario Varanda disse...

Obrigado amigo, sempre a aprender, com mais pormenores do parque, abraço :)

Álvaro Reis disse...

Viva Mário! Aprendemos uns com os outros, cada qual com o seu saber.