sexta-feira, 26 de julho de 2024

A garça-boieira (IV)

 




(continuação)


O Verão, quente e seco, encontrou a marisma órfã da sua pequena garça. 

As colónias, antes repletas e confusas, estão agora silenciadas e vazias.






Apenas o subtil canto da alvéola-amarela (Motacilla flava), que pousou aqui perto, sobre o cocuruto de um arbusto, ...





... o chamamento curto e borbulhante da galinha-d'água (Gallinula chloropus), que saindo do interior do canavial, atravessa rapidamente o charco ...






... e o penetrante canto do rouxinol-pequeno-dos-caniços (Acrocephalus scirpaceus), estacado num dos milhares de colmos presentes,...




... quebram o silêncio do pântano, recordando que, apesar de tudo, por aqui a vida não acabou! 


Ao redor da marisma estendem-se prados húmidos a perder de vista. As altas ervas e as gramíneas que adornam estes prados durante o Verão escondem grandes populações de invertebrados, entre os quais vários grupos de artrópodes. 



De pequenas dimensões, estes seres fixam-se às folhas e caules, ...




... e alguns deles, como as carraças (ordem Ixodida), por necessidades da sua fisiologia, saltam a gosto para animais de sangue quente, como o gado bovino, quando por esses pastos se alimenta. 




Esta relação de parasitismo exercida pelas carraças sobre o gado seria terrível para este - pois aquelas constituem-se como perigosos vectores de transmissão de doenças - caso não existissem predadores especializados no controlo desses invertebrados. 


E, é aqui que entra em jogo a nossa garça. 

Dado as carraças constituírem deliciosos petiscos para a garça-boieira ou carraceira, como também é apelidada, não haverá, por certo, bovinos a pastar pelos campos que não arrastem atrás de si uma ou várias garças-boieiras.



Cobertos por uma imensidão de carraças, os bovinos são autênticos "restaurantes ambulantes" para as garças-boieiras. 

Estas, ao mesmo tempo que obtêm alimento abundante, actuam como elementos sanitários do gado, num tipo de relação positiva, denominada pela ciência de "mutualismo facultativo".  



O Verão passará e com ele o calor, incubador de insectos e aracnídeos, como as carraças. As populações de artrópodes diminuirão, mas a garça-boieira continuará a ser vista pelos campos durante o Outono e Inverno, pois estes sempre oferecerão alimento a este grupo de aves.




E quando o Inverno passar, esta bela garça regressará à marisma para cumprir mais um ciclo de vida! 







sexta-feira, 19 de julho de 2024

Um mês de Verão

 









O verão, no calendário, leva um mês de existência. As características meteorológicas destes últimos trinta dias, contudo, não o demonstram. 

Aos dias solarengos e mais aquecidos sucedem-se em ciclos alternados, outros, em que a temperatura desce vários graus e o sol se ausenta encoberto por um céu cerrado de cinza retinto.




A chuva miudinha, caída a medo durante esta noite, faz acordar a manhã com um aroma adocicado, que apetece saborear. A atmosfera repleta de gases, a ela estranhos, ficou assim lavada. E com ela também o foram os solos e as águas. 




Os seres vivos, elos importantes desta engrenagem natural, saem, por sua vez, todos a ganhar. Água, é a base da vida e quando cai após um significativo período de ausência, é suficiente para revitalizar rapidamente as energias de todos os viventes. 

Nas bolsas de água menos agitadas, os alfaiates (Gerris lacustris), sempre presentes, parecem surgir agora em maior número. Esta biomassa aquática é fundamental num período em que os ciclos reprodutores das suas presas (outros insectos e larvas) e dos seus predadores (anfíbios e aranhas) atingem um pico em número de indivíduos existentes.




Estes dias de verão, molhados e de temperaturas amenas, trazem para fora dos seus refúgios, tanto do subsolo como da superfície, vários outros seres. 

Entre eles destacam-se os moluscos, como a lesma-preta (Arion ater), habitualmente recolhida por entre a vegetação arbustiva, mas agora completamente exposta, na senda de alimento.



Também os anelídeos, como as minhocas (Lumbricus sp.), impulsionados para a superfície, saciam os apetites do melro-preto (Turdus merula) e de outros comensais.



Os musgos e líquenes humedecidos, convidativos a toda uma casta de insectos, atraem diversas espécies de pássaros que deles se alimentam, como a bela e traquina alvéola-cinzenta (Motacilla cinerea).  




Também os roedores, como a ratazana-castanha (Rattus norvegicus), intensificaram a sua actividade; basta constatar a frequência com que passaram a ocorrer os seus avistamentos, nomeadamente dentro de água.  A chuva caída arrastou nutrientes das margens e outros do fundo, criando novas disponibilidades alimentares.



Não restam dúvidas de que esta bênção caída do céu, por pequena que tenha sido a sua duração, se infiltrou em tudo aquilo que apresente capacidade de absorção. Daí os répteis se exporem por esta altura, já que formam um grupo de animais que também depende dos pequenos invertebrados. É isto mesmo que a lagartixa-de-Bocage (Podarcis bocagei) anda a fazer, caçando insectos xilófagos espevitados pelo ensopado da madeira.




Enquanto o verão segue com este padrão climatérico, em que as temperaturas do ar não aquecem a sério - secando o solo e as águas, queimando as florestas e os matos - os seres vivos continuarão a revelar-se de forma notória, pois as condições do meio assim o permitem, obrigando-os a terminar, quanto antes, a tarefa que iniciaram na primavera; a produção de novas vidas




sexta-feira, 12 de julho de 2024

A cegonha-branca (IV)

 




(continuação)


As crias de cegonha-branca (Ciconia ciconia) estão, por finais do mês de Maio, já muito desenvolvidas. 

A primogénita, sob o olhar atento do progenitor e o olhar complacente do irmão mais novo, vai exercitando no ninho o batimento de asas, primeiro passo para a futura aptidão de voo.



Antes dos dois meses de idade, lá por alturas dos santos populares, os juvenis de cegonha-branca (Ciconia ciconia) já abandonam o ninho, embora regressem a ele para serem alimentados pelos pais e para nele passarem a noite.



Só por meados do terceiro mês de vida é que as jovens cegonhas começarão a ser totalmente independentes, dispersando-se por prados e lameiros à procura de alimento. É, então que, cada vez serão mais os ninhos que se avistam vazios e maiores os bandos dispersos pelos campos.



Progenitores e juvenis basculham incessantemente cada palmo de terra, em busca da quantidade de alimento necessária para permitir a cada ave atingir os níveis de energia requeridos para a esgotante migração, que muito em breve terão de realizar.

Entre os recursos alimentares da cegonha-branca, mencionados no apontamento anterior, conta-se pela sua abundância, o lagostim-vermelho-da-Louisiana (Procambarus clarkii). 

Esta espécie, introduzida como exótica, proliferou de tal maneira que, constitui-se invasora em diversos meios aquáticos de Portugal continental e simultaneamente uma preciosa fonte de biomassa para as cegonhas. 



O verão, apesar de experimentar uma exposição solar cada vez mais curta, segue abrasador, oferecendo em cada mágico pôr-do-sol sensações inesquecíveis, recordadas amiúde alguns meses depois.




A meio de Agosto, as cegonhas-brancas deixarão de se observar pela região aveirense, pois já iniciaram a sua deslocação para sul.

Umas permanecerão em território continental, errando pelas estepes do sul da Ibéria. Outras, pelo contrário, formarão bandos migratórios, juntamente com algumas centenas de exemplares provenientes de outros países do centro e norte europeus. 

Estes grandes bandos atravessarão o Estreito de Gibraltar até à África central e do sul, numa viagem que demorará, em média, cerca de metade do tempo gasto na migração primaveril, devido à boleia oferecida pelos ventos predominantes de norte/noroeste. 



Deste modo se encerra mais um período de estadia da cegonha-branca entre nós. As que sobreviverem, sobretudo à caça ilegal e à poluição por pesticidas - práticas comuns em África - regressarão à nossa região no final do ano, quando as invernantes portuguesas, fiéis ao local de nascimento, se deslocarem de novo para norte. 



sexta-feira, 5 de julho de 2024

O lagarto-de-água

 




Belo e inconfundível. Dois justos atributos para este endemismo ibérico ocidental. Uma espécie relevante da herpetofauna portuguesa.

Com a chegada da Primavera, o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), com um comprimento de cabeça e corpo que ronda os 12 cm e uma cauda com o dobro do tamanho do corpo, regressa à sua actividade social, interrompida durante o período invernal. 




Já com a estação instalada, esta espécie dá início à sua actividade reprodutora. 

É durante o período de acasalamento - que pode ir até ao mês de Julho - no qual os machos perseguem insistentemente as fêmeas escolhidas, que se pode constatar o claro dimorfismo sexual existente nesta espécie.

Os machos, mais pequenos que as fêmeas, mas mais corpulentos na cabeça e no corpo, apresentam um padrão de coloração dorsal esverdeado, manchado de pontos negros, mais densos no dorso que nos flancos, e ventre amarelado. As fêmeas, pelo contrário, com uma cauda mais comprida, apresentam o dorso e flancos com uma tonalidade acastanhada, com laivos esverdeados e manchas negras mais desenvolvidas. 




Mas o que torna este lagarto belo e inconfundível, entre os demais lacertídeos, é a tonalidade azul intensa que pinta a sua garganta e cabeça, predominantemente dos machos, durante esta fase reprodutiva!



Uma observação mais aproximada do animal permite distinguir as escamas da garganta e do dorso de rebordo arredondado, bem como, os dedos curvos com unhas aguçadas que lhes permitem agarrar-se firmemente às superfícies por onde trepam.




O cortejamento do lagarto-de-água é um ritual algo demorado, até o macho conseguir colocar-se em posição de cópula.



A cópula, tal como qualquer outro momento da vida desta espécie, passa quase despercebida a um olhar desatento, mesmo quando os protagonistas estão bem próximos.

E a razão é simples. Mimetismo.

O lagarto-de-água escolhe para viver zonas de vegetação densa, habitualmente nas proximidades de cursos de água, quer sejam rios pedregosos de montanha, quer sejam veios de água atravessando matagais, bosques, sebes arbustivas, campos agrícolas ou prados. 




Ora, a coloração geral das diferentes partes do seu corpo, bem como, as características próprias da sua locomoção, integram-no perfeitamente no seu habitat, dificultando a sua localização.