sábado, 1 de agosto de 2020

O Covid-19 e as aves da nossa cidade: em tempo de desconfinamento.

 

Passaram-se mais de dois meses desde o último relato sobre os comportamentos primaveris das aves da cidade de Ovar. Entretanto, os ovarenses passaram a viver, um pouco mais descontraídos mas sempre receosos, o desconfinamento autorizado pelos organismos de saúde da república portuguesa. Velhos hábitos sociais se foram recuperando embora nem sempre da forma adequada; mas a verdade é que o ser humano carece, pela sua natureza, disso mesmo … entrosamento social. 

 

 

Neste entretanto chegou o Verão e com ele dias de calor intenso e uma mudança acentuada na fenologia das aves ... é que o calor não amolenga apenas o homem…

Enquanto a espécie humana continua com as suas rotinas diárias, repetitivas, semana após semana, mês após mês, as aves urbanas deixaram velhos hábitos e adquiriram outros; e esta mudança, quase imperceptível, continuará a manifestar-se nos próximos tempos. 

Para a grande maioria das espécies a incubação cessou há mais de um mês. Outras, insistentes e pródigas na reprodução continuaram até ao presente, com ninhadas sucessivas....

A cobertura vegetal do parque urbano e demais jardins da cidade continuam densas e predominantemente verdes, embora com tons um pouco mais desmaiados do que antes. As flores silvestres começam a perder as suas cores garridas devido às altas temperaturas que se vão fazendo sentir nesta altura do ano.

 


 

É chegado, então, o momento de sairmos de casa devidamente protegidos do calor, usarmos os binóculos sempre que necessário e darmos uma nova olhada pela avifauna da cidade. Vamos lá!

 

A cegonha-branca (Ciconia ciconia) que começou a nidificar em meados de Março incubou os seus ovos durante aproximadamente um mês. Terminado este tempo os filhotes foram crescendo no ninho, alimentados por ambos os progenitores, que não se cansaram de viajar para os campos próximos em busca de alimento. 

  

Reza a tradição que, pelos santos populares os filhotes já exercitaram suficientemente o batimento das asas e por isso por volta dessa quadra os ninhos instalados nas antenas, postes, árvores ou chaminés passaram a ficar definitivamente vazios ….. 

....é que aqueles jovens, entretanto, acabaram por efectuar o seu baptismo de voo passando então a engrossar o número de aves que nesta altura do ano se concentram em número crescente pelos campos da periferia da cidade …

 


A imagem das encantadoras cegonhas-brancas volteando sobre o centro da cidade de Ovar apenas se poderá voltar a observar no próximo ano ….

  


Com o desconfinamento social deu-se também o desconfinamento dos serviços de jardinagem municipal e as máquinas cortadoras de relva desbastaram em pouco tempo as gramíneas que já iam altas nos prados do parque urbano. Estas jardinagens levadas a cabo com objectivos estéticos têm o grave inconveniente de  destruírem ninhos de aves ainda ocupados e localizados próximos do solo ou no mínimo perturbarem a criação dessas mesmas aves.

Mas não só.

Tais acções são ainda extremamente nocivas para os insectos que nesta altura do ano e consoante as espécies têm os seus ovos, ninfas ou larvas nestas mesmas gramíneas e que assim vêem afectado o seu sucesso reprodutor.

Como resultado dessa destruição, que deixa os diferentes grupos de insectos vulneráveis perante os predadores, vê-se uma variedade de aves, algumas até predominantemente granívoras, a aproveitarem este manancial disponível.

  




Olhando o céu em redor constata-se que, tanto para os impetuosos e sempre hiperactivos pombos-domésticos (Columba livia, raça doméstica) como para as elegantes rolas-turcas (Streptopelia decaoto) muito pouco mudou nos seus comportamentos, sendo este grupo uma excepção relativamente aos restantes grupos de aves da cidade. 

Os pombos, lá continuam com os seus voos rápidos, directos, permanentes, quer solitários, quer em pequenos ou grandes grupos, mantendo aquele padrão imutável de actividade ao longo do dia.

  


As rolas, por seu lado, continuam a evidenciar-se com seus abafados arrulhos logo pela manhã, escolhendo poleiros destacados e daí partindo para pequenos volteios sobre os telhados ou voando até às ramagens de uma árvore próxima.

  


Dá-se o caso de que alguns destes columbídeos ainda revelaram comportamentos reprodutores em meados de Julho …. um ou outro pombo ainda se deixou ver transportando um pequeno ramo no bico e casais de rolas sempre juntinhas em paradas nupciais…. A disponibilidade fácil de alimento permite que este grupo de aves possam realizar mais de uma postura por época.

  

 

Também os seus fiéis predadores, como os milhafres-negros (Milvus migrans) intensificaram ao longo destes dois meses e meio os seus raids sobrevoando diariamente o centro da cidade, perseguindo os columbídeos. 

 

 

Os cursos de água que atravessam o parque urbano nesta altura do ano estão cheios de insectos, entre os quais se destacam os alfaiates (Gerris lacustris), alimento das aranhas, que por sua vez são alimento dos pássaros.

  


A boa oxigenação das suas águas conseguida nas represas e açudes existentes é um factor decisivo para a qualidade das mesmas permitindo a reprodução não só dos insectos mas também dos peixes do rio.

 


Contudo, as descargas de poluentes para os cursos de água que atravessam o parque urbano, sempre que acontecem, matam a vida aquática e comprometem a biodiversidade do parque.

  








Cenários destes, são totalmente incompreensíveis nos dias de hoje, por um lado, pela sensibilização ambiental realizada ao longo de décadas junto da população em geral (a partir da idade escolar) e por outro pela inoperância da autarquia vareira que apregoa vestir sempre a camisola do “verde” mas que na prática anda sempre vestida de fato negro ….. 

Imperdoável a falta de respeito para com a natureza e para com os ovarenses quando perante atentados ambientais como o verificado no início do passado mês de Julho não há um esclarecimento oficial daquilo que correu mal!

Mas deixemos as irresponsabilidades autárquicas e olhemos o belo, a natureza, lutando e tentando sobreviver com os seus heróis, os seres vivos selvagens.


No que respeita aos pequenos cantores o padrão das suas vidas mudou e muito…

A demarcação territorial primaveril, assinalada pelo canto fervoroso dos machos, empoleirados nos arbustos e ramagens dos parques da cidade acompanhou todo o período de acasalamento e incubação. Posteriormente, esses cantos têm vindo a deixar de se fazer ouvir com a mesma intensidade ….

Bem cedo pela aurora, os cantos intensos da passarada que se ouviam há mais de dois meses deram lugar a manhãs quase silenciosas onde já não se ouvem os madrugadores melros-pretos, os rabirruivos-pretos, os verdilhões ou os chamarizes … apenas algum chilreio de andorinha-dos-beirais quando passam perto em voo.

É que, os progenitores de cada espécie passaram a ocupar-se da criação das proles nascidas. Os adultos pequenos cantores passaram a empregar todas as energias na procura de alimento de forma a taparem as bocas sempre abertas que encontravam ao chegar aos ninhos.

  


Este grupo de aves, os passeriformes, vasto em espécies, não permitiu que todas aquelas que ocorrem com regularidade no centro da urbe ovarense pudessem ter sido abordadas no texto a elas dedicado anteriormente. Procurar-se-à agora abordar mais algumas que então não puderam ser contempladas. 

Mas antes, deve ser feita uma menção especial àqueles que nesse mesmo texto intitulei de reis e rainhas dos parques, pois os mesmos continuaram ao longo destes meses a fazer jus aos epítetos, sempre muito presentes desde bem cedo pela manhã, mas muito mais silenciosos do que no passado recente… 

 

 

Um dos pequenos cantores que frequenta os parques e jardins ovarenses e ao qual ainda não foi feita qualquer referência, é um insectívoro por excelência tal como um dos seus primos já antes abordado. De canto ténue, com uma tonalidade geral escura sobretudo no dorso, neste período de pós-nidificação costuma deixar-se observar mais facilmente, saltitando de forma acrobática de ramo em ramo. Trata-se da subespécie ibérica do chapim-rabilongo (Aegithalos caudatus irbii).



Extremamente irrequietos e pequenos, descobrem-se facilmente pela sua comprida cauda e porque se movimentam nas árvores em grupo, tal qual uma onda, que entra por um lado da árvore e sai pelo lado oposto, não sem antes todos os componentes do grupo terem explorado os diversos ramos da árvore.

Ambos os cônjuges desta espécie construíram durante aproximadamente três semanas um ninho ovalado, com abertura e revestido por líquenes, assente numa bifurcação de árvore ou de arbusto próximo da água, ficando o mesmo fixo por meio de fibras naturais e teias de aranha.

Este chapim tem uma postura que varia entre oito a doze ovos brancos sarapintados de vermelho. As crias, incluindo as de uma segunda ninhada estão independentes desde o início de Junho, razão pela qual os referidos bandos quando surgem são formados pelos pais e pelos filhos de diferentes posturas.

  

Outra esbelta ave canora, insectívora no Verão, habitante dos nossos parques e jardins é a toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapilla), o qual é preto nos machos e castanho avermelhado nas fêmeas. 

 

          


Sobretudo durante o período de nidificação os alegres trinados lançados pelos machos desta espécie não deixam ninguém, que se encontre nas proximidades, ficar indiferente, tal é a beleza dessa sonoridade. Contudo, tentar vislumbrar a ave que tão bem canta assim é uma tarefa hercúlea frequentemente infrutífera.

O ninho desta espécie é construído por ambos os cônjuges em forma de um pequenino cesto e localiza-se na parte baixa dos mais intrincados arbustos e silvados. A postura normal é de cinco pequeninos ovos, de coloração variável avermelhada ou amarelada com manchas castanhas ou cinzas, que são incubados por ambos os sexos. Caso haja uma segunda postura todos os juvenis se encontram independentes dos pais desde o início de Junho.

 

Outra bonita ave habitante dos mais densos parques da cidade é o tentilhão-comum (Fringilla coelebs). O macho apresenta na altura da nidificação um canto sonante além de uma plumagem vistosa, em que se destacam duas listas brancas nas asas e nos bordos da cauda e uma bonita cor de vinho na plumagem do peito. 

  


Esta espécie é um granívoro por excelência, embora no Verão aproveite a abundância de insectos que habitam estas áreas verdes da cidade procurando-os com o seu característico voo ondulante.

O ninho, em forma de cesto é colocado na bifurcação de ramagens e é externamente revestido por musgo e líquenes, onde a fêmea deposita e incuba sozinha quatro a cinco ovos avermelhados ou azul-acinzentados com pintas vermelho-acastanhadas. Os juvenis tornam-se independentes desde finais de Maio ou meados de Junho se houver uma segunda ninhada.

 

Um dos mais pequenos cantores da fauna portuguesa, muito discreto, de cor geral acastanhada, aspecto rechonchudo, cauda curta e sempre erecta, por aqui vive nas zonas mais interiores e baixas dos arbustos. Trata-se da carriça (Troglodytes troglodytes).

  

 

O canto melodioso desta ave rapidamente se pode transformar num outro de grande sonoridade, contrastando assim com a sua diminuta envergadura.

O macho, polígamo, constrói vários ninhos que serão usados pelas fêmeas. O ninho consiste numa robusta estrutura abobada com uma abertura e é feito de ervas, folhas e musgo, sendo forrado com penas no seu interior.

A fêmea faz uma única postura de cinco a oito ovos brancos quase sempre sarapintados, com manchas pretas ou castanho avermelhadas, sendo incubados unicamente por ela.

As crias são alimentadas por ambos os progenitores e o solícito macho atende a todas as suas proles. Os juvenis desta espécie deixam o ninho lá pela terceira semana de Maio.

 

Não é raro, pois, que durante a segunda quinzena de Maio seja frequente observarem-se juvenis destes pequenos cantores, que embora já fora do ninho, ainda são alimentados pelos seus progenitores. Os juvenis procuram atrair a atenção dos pais com insistentes chamamentos e bater de asas.

  

Deixámos para o fim o último grupo de aves abordadas em texto anterior, as andorinhas e os andorinhões.  À partida poderia justificar-se tal opção pela sequência da ordem cronológica das anteriores abordagens. Contudo, a verdadeira razão é outra.

 

A andorinha-das-rochas (Ptyonoprogne rupestres) que alimentava as suas crias voadoras já em meados de Abril, volta a deixar observar-se exactamente com o mesmo comportamento nos primeiros dias de Julho…..ou seja é possível que alguns casais da espécie possam ter tido três ninhadas este ano. 

  

 

Também a andorinha-dos-beirais que em meados de Abril se via a alimentar as suas crias fora do ninho (inclusivamente partilhava a mesma plataforma – um beiral de janela – com a andorinha-das-rochas) não parou de criar desde então em três ninhos alvo de estudo (num dos quais as paredes acabaram por ceder devido ao desgaste nele exercido pelas várias gerações de aves que por ele entravam e saíam) …. ou seja cada um destes três ninhos abrigou seguramente três posturas até ao momento presente. 

  



Estes factos são muito relevantes pois nem em todas as temporadas de criação estas aves conseguem fazer uma terceira postura...um bom sinal para a recuperação das populações de andorinhas.

  

A tarde acabou e o crepúsculo já empurrou todas as nossas aves para as ramagens mais escondidas das árvores onde irão passar a noite protegidas dos predadores nocturnos.

Nesse texto anterior dedicado aos pequenos cantores dos parques e jardins, despedimo-nos ao crepúsculo com a entrada em cena de um dos cantores da noite, o mocho-pequeno-de-orelhas (Otus scops). Hoje fazemos esta despedida com um outro personagem, bem mais familiar das gentes do campo, o icónico mocho-galego (Athene noctua). Será o seu monótono "miado" que se irá fazer ouvir até que o sono desligue por umas horas os nossos ouvidos do mundo.

 

 

Podemos afirmar assim, que este ano, de todo invulgar e preocupante para os seres humanos, foi pródigo, contudo, para as aves que vivem no meio das nossas cidades! 

Ficam os votos de que a natureza consiga vencer todas as ameaças que sobre ela pesam, mesmo quando provenientes daqueles que afirmando-se "amigos do verde" são efectivamente e de forma narcísica "amigos dos seus próprios interesses pessoais".