quarta-feira, 26 de abril de 2023

A grande colónia !

 





A manhã ainda mal acordou. 

A luz matinal acobreada, porque aprisionada pela neblina que paira sobre o pântano, não impede, contudo, que a colónia já esteja desperta.




Ainda que a uma distância razoável, ouvem-se alguns sons provindos da mesma. Roucos e abafados.


Enquanto se vai estreitando a distância para a colónia, a neblina vai perdendo o seu efeito de cortina, deixando a nu o ambiente soturno que domina naquele condomínio natural. 

Aguçando melhor o olhar, consegue-se vislumbrar uma primeira ave, graças ao contraste produzido pela sua cor clara em fundo escuro, tal qual, uma sentinela da marisma. 

Trata-se de uma belíssima garça-real (Ardea cinerea). A plumagem cinza das asas, a coroa, fronte e lados do pescoço brancos e o forte bico amarelo-alaranjado indicam tratar-se de um adulto reprodutor.



Estancamos. E deixamo-nos ficar, cativados por esta singela moldura.


À medida que o relógio faz avançar o ponteiro dos minutos, as névoas vão-se atenuando. O campo de visão alarga-se e aprofunda-se. Descobrem-se, então, mais garças-reais, erectas nos seus ninhos, pouco coesos por sinal, sobre os salgueiros (Salix sp.) despidos, que crescem naquele meio palúdico. 



À medida que o ponteiro das horas vai deslizando, no seu ritmo mais compassado, aumenta o número de aves a empreenderem voos da colónia para outras zonas do pântano mais ou menos próximas, em busca de alimento. 



Não há dúvida que as garças-reais fazem jus ao seu nome de baptismo. Além do seu semblante altivo parecem manter um clima de cordialidade com os seus vizinhos, apesar de haver ninhos construídos muito próximos uns dos outros.




A envergadura da espécie faz com que cada levantamento do ninho se transforme num exercício físico exigente, pois é preciso vencer a gravidade e as intrincadas ramagens envolventes.



Mas é sobretudo no seu regresso à colónia que estas aves deslumbram quem as observa. 

Depois de sobrevoarem o ninho, numa meia volta imperfeita, acabam por aterrar nele de forma precisa, balanceando convenientemente as asas e as patas para o conseguirem. 





A meio da manhã, a gritaria na colónia é forte e os timbres ressoam variados porque, para além da sua população ser numerosa, às garças-reais juntam-se outras espécies afins. Espécies, que no Inverno raramente se cruzavam, pois exploravam diferentes habitats e tinham vida solitária, mas que agora se juntam para a fase da nidificação.

É numa zona do pântano onde a densidade arbórea é maior, que se situa a área central da colónia. Aqui, com os ninhos incrivelmente próximos uns dos outros, é onde as aves mais se fazem ouvir, reclamando constantemente os seus nichos territoriais.




Na colónia, além das garças-reais há inúmeras garças-boieiras (Bubulcus ibis). 



Mesmo à distância distingue-se, muito bem, a tonalidade amarelo-alaranjada do bico, coroa, peito e manto dos adultos, em contraste com a plumagem completamente branca dos juvenis.


Nesta confusão colonial também marcam presença vários casais de goraz (Nycticorax nycticorax), uma garça de hábitos predominantemente nocturnos, acabada de chegar de África, onde passou o período de Inverno.



De aspecto compacto e bico curto, ambos os progenitores de goraz chocam os ovos de forma alternada. 

O elemento do casal que não está a chocar costuma ser observado nas proximidades cuidando da sua plumagem; é então, que se pode apreciar a beleza destes reprodutores, de cujas cabeças se projectam duas compridas penas brancas.



(continua)


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Desertos verdes (IV)

 




(continuação)


Entre a vegetação arbustiva que adornava o pinhal destacava-se, à data, como muito abundante, a camarinheira (Corema album). 



Planta característica dos solos dunares apresentava-se no início da Primavera desprovida dos seus saborosos frutos, as camarinhas, que mais tarde ornamentariam a mata de múltiplos pontos brancos, ao mesmo tempo que serviriam de alimento a diferentes espécies animais.




A dominância deste tipo de vegetação arbustiva de médio porte permitia, ademais, a tão necessária camuflagem e abrigo para essa mesma fauna.


Era pois, por aqui, nas zonas mais interiores do pinhal, suficientemente afastadas do burburinho do povoado, que a vida silvestre, sobretudo ao nível dos mamíferos carnívoros, mais surpresas proporcionava.

Com o conhecimento dos seus hábitos e dos vestígios deixados pelos mesmos era possível, não raras vezes, encontros - sempre fascinantes - com esse grupo de seres.


O encontro com a astuta raposa (Vulpes vulpes) era quase sempre pré-anunciado, pelas marcas e odor característicos espalhados pelo seu território.



Sempre que acontecia, era uma delícia de avistamento ... apesar de extremamente fugaz!


Era também muito frequente encontrar despojos das caçadas protagonizadas pelas aves de rapina. Estas, predavam habitualmente sobre o pombo-torcaz (Columba palumbus), enquanto repousava nas ramagens.




A natureza arenosa do pinhal favorecia a formação de covas, que acabavam por se consolidar com as raízes e a própria vegetação herbácea do solo. 



Estas aberturas eram procuradas não só por raposas, mas também, por coelhos e mustelídeos, como entradas para as complexas galerias das suas tocas. 



Quando a tarde caía era hora de regressar. O pinhal começava a escurecer rapidamente. Os animais que se haviam avistados durante o dia já estavam recolhidos para o descanso nocturno.



Neste regresso ao lusco-fusco procurava-se aumentar os níveis de atenção sobre o estrato arbóreo, pois sabia-se que isso faria aumentar a probabilidade de novos avistamentos.

Apesar de completamente imóveis e com uma plumagem extraordinariamente camuflável, como de grossas ramagens se tratassem, podia-se com sorte descortinar aves de rapina nocturnas, como a emblemática coruja-do-mato (Strix aluco).



Esta mesma rapina nocturna, com os seus lancinantes gritos, haveria de afugentar das imediações do pinhalumas horas mais tarde, a maioria dos seres humanos que por lá ainda circulassem! Os seus gritos eram interpretados, à luz das crendices populares de então, como de mau agoiro e de almas penadas a vaguearem pela noite.


A relutância natural em abandonar o mundo místico da mata conduzia, muitas das vezes, a uma rápida escuridão no seu interior, apesar de no exterior da mesma ainda haver alguma luz ambiente. Uma grande vantagem, afinal, para quem lá andava.

No cimo do arvoredo não espreitavam apenas as aves da noite. Os mamíferos nocturnos também. E era fabuloso quando se conseguia vislumbrar a geneta (Genetta genetta)...



... encolhida sobre um grosso ramo, com sua pelagem estriada e olhar ensonado, despertando muito lentamente para as intensas caçadas que aconteceriam por entre as copas.


A vida registada durante o dia continuava durante a noite, com os mesmos ou com outros protagonistas.

À noite nada se conseguia observar, é certo. Mas ouvia-se. Ouviam-se ruídos vindos das árvores e dos arbustos. Ouviam-se pios e rastejos. 

Havia, sem dúvida, bastante vida. Biodiversidade.





Meio século se passou e esses extensos pinhais já não existem. 
Antes, eram eles que rodeavam os povoados. Hoje, são os povoados a esventrá-los, com desbastes sucessivos, para novas urbanizações, zonas industriais, áreas comerciais, ..., tal qual, como de uma praga anti-natureza se vivesse nos dias que correm.


Onde estão hoje, os sons da floresta de outrora, substituídos pelo actual silêncio que atordoa ao vaguear pela mesma?

E onde está a capacidade do pinhal em regenerar o ar, permitindo o desenvolvimento das comunidades de musgos, fungos e líquenes, tão importantes no equilíbrio do ecossistema? 

E o que resta dos nichos ecológicos que o pinhal possuía (como os que eram oferecidos pela camarinheira que, de abundante se tornou numa espécie ameaçada) e que permitiam a existência da fauna?  

E onde se encontram os predadores, como as raposas, as genetas e as rapinas? E as suas presas, como a rola-brava e o coelho-bravo? 

Onde está, afinal, essa biodiversidade de outrora?


Não está. Não estão. Simplesmente, já não existem.



Talvez, porque durante anos se assistiu ao massacre de algumas espécies, levando as mesmas a níveis populacionais tão baixos que afectariam negativamente as cadeias tróficas do pinhal.

Talvez, devido à falta de vontade em cuidar da floresta por parte dos organismos com essa competência, e que conduziu ao aparecimento de espécies invasoras, melhor adaptadas para a sobrevivência.

Talvez, devido ao barulho dos veículos todo-o-terreno, que passaram a rasgar a quietude natural deste ecossistema, retirando as condições necessárias para a fixação da fauna selvagem.


Talvez, ... direi antes, certamente!


O pinhal abastardou-se com diferentes espécies de acácias (Acacia sp.), que não precisam de muito para subtraírem o solo necessário a toda a restante flora autóctone...







... e com eucaliptos (Eucalyptus globulus), capazes de reduzir negativamente os aquíferos da mata, bem como, a natureza da manta morta que cobre o solo.





Os lixos, que no passado eram depositados na periferia do pinhal, até pelas evidentes dificuldades de transporte dos mesmos, passaram a ser transportados de forma fácil e depositados em diferentes pontos do seu interior, conspurcando globalmente todo o ecossistema. 






Os pinhais, que originalmente foram plantados para protegerem as produções agrícolas transformaram-se ao longo do tempo em motores de actividades industriais.

Primeiro, as agressivas monoculturas intensivas que alimentaram durante décadas (e continuam a alimentar) as unidades de produção de pasta de papel, com todo um mercado paralelo na compra e venda da madeira. 

Agora, a exploração do arvoredo para as unidades de biomassa. A nova moda. Bastante simples e rentável, também, como se pode constatar in loco.


Primeiro, cortam-se as espécies indesejadas juntamente com as outras que estão próximas (já que proceder a um corte mais selectivo tornar-se-ia mais moroso e por conseguinte mais dispendioso!) . 

Estas toneladas de lenha são carreadas por tractores através de trilhos e aceiros...




... até a um local, no próprio pinhal, onde as máquinas trituradoras transformarão troncos e ramagens em estilha, a qual cairá directamente nos camiões ...
 



... que cheios de matéria-prima seguirão até às centrais de produção de energia.


Uma verdadeira linha de produção industrial que se desenrola não numa fábrica mas antes em plena natureza. 

Os pinhais passaram a ser alvo de decibéis proibitivos. Semanas, meses de um barulho constante de destroçadores e trituradores, afastam os seres vivos da mata. Não há bicho que lá encontre condições para viver.

Por outro lado, e a pretexto da eliminação da flora invasora, destrói-se simultaneamente espécies autóctones, e facilita-se a erosão do solo do pinhal.





Uma verdadeira tragédia!

O pinhal continua verde, sim. Mas é um verde sem vida. 

Sem a biodiversidade que lhe foi própria no passado!





segunda-feira, 10 de abril de 2023

Andorinha-dáurica em expansão!

 





A andorinha-dáurica (Hirundo daurica) é uma espécie estival em Portugal, tendo tido, durante muito tempo, uma distribuição localizada ao sul e interior do país.

Em anos recentes a espécie expandiu-se para norte, continuando contudo a colonizar habitats de montanha.

Dado que a área de distribuição da espécie é mal conhecida na actualidade, é digno de registo a observação de um indivíduo desta espécie, integrado num bando de andorinhas-dos-beirais (Delichon urbicum), em plena planície litoral aveirense. 




Em face deste registo actualiza-se o quadro de chegadas primaveris para a região:




quarta-feira, 5 de abril de 2023

Desertos verdes (III)




(continuação)


Quanto mais se deambulava para o interior da mata, mais fácil era dar de caras com columbídeos, próximos de seus ninhos.

O forte bater de asas, num voo de alarme, do pombo-torcaz (Columba palumbus) obrigava a estancar. Decorrido algum tempo e com grande probabilidade podia-se encontrar esta ave a alimentar-se no solo florestal.


 

De não muito longe se escutavam os arrulhos da rola-brava (Streptopelia turtur), recém chegada de África e por esses tempos ainda relativamente comum. 

Atentando na direcção dos seus sons procurava-se descobri-la, até que ... lá estava ela! Poisada elegantemente no cimo de um ramo. 

Linda, com seu peito rosa com laivo azulado e apresentando um conjunto de riscas brancas e pretas dos lados do pescoço.




Os troncos dos pinheiros-bravos localizados bem no interior do pinhal eram altos e hirtos, pois encontravam-se fora do alcance dos fortes ventos mareiros.






Isso não impedia que algumas árvores tombassem de velhice, aquando das invernias ...




... formando-se, então, clareiras no interior da mata...



... onde não poucas vezes se deparava com algum coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), a pastar ou de orelhas no ar, porque alertado pelo barulho da nossa aproximação.




Era, também, sobre estas zonas mais ralas que as águias-d'asa-redonda (Buteo buteo) gostavam de pairar frequentemente, pois dispunham de um maior campo de visão e de acção, para capturarem as suas presas. 

 



Deixando para trás a clareira, a mata voltava-se a fechar, dificultando a passagem da luz solar e parecendo querer apressar o regresso.




Contudo, os sons ambientes, de tão apelativos, abandonavam logo esta ideia e o regresso era sempre, invariavelmente, protelado.  


Desta vez, era o tamborilar ruidoso e rápido do pica-pau-malhado-grande (Dendrocopus major), uma dos seres mais belos da avifauna florestal, que nos prendia e motivava a continuar.





(continua)



terça-feira, 4 de abril de 2023

Desertos verdes (II)

 






(continuação)


Corria a segunda metade do século XX, antes da mixomatose se começar a revelar de forma incisiva no território continental português. 

Deambular por um pinhal durante o dia proporcionava encontros não raros com mamíferos, répteis, aves e outros animais bravios. Encontros fugazes, sem dúvida, mas que por essa mesma razão se transformavam invariavelmente em encontros fascinantes.


As manhãs de Primavera na mata acordavam animadíssimas pelos agradáveis cantos da passarada. Os machos de tentilhão-comum (Fringilla coelebs) reivindicavam alegremente os seus territórios...



... tal qual, o seu familiar verdilhão (Carduelis chloris).



Ambos, como verdadeiros anfitriões, recebiam os visitantes do alto dos pinheiros que marginam a mata. Acrescente-se que, à beleza das suas cantorias correspondia a beleza das suas plumagens.



Já no interior da mata, caminhando lentamente pelos singelos trilhos, que teimavam em querer desenhar-se sobre o solo arenoso, adornado de verdes gramíneas ...




... sentia-se, olhando em redor, o forte envolvimento dessa planta arbustiva, atraente e omnipresente; o tojo-arnal (Ulex europaeus). 




O amarelo intenso das suas corolas combinado com o verde forte dos espinhosos filódios exercia uma tal sedução, que era impossível resistir a um olhar mais próximo, direi mesmo contemplativo da planta.




Estes momentos de maior proximidade com o arbusto permitiam constatar que esta intensa coloração não atraía somente o nosso olhar; atraía, de modo particular, variados insectos, ávidos do seu néctar.





Os sons das aves continuavam a ouvir-se no interior do pinhal. Mas agora, emitidos num tom mais abafado. 

A variação musical dos mesmos permitia identificar a presença de diferentes espécies, mesmo antes das mesmas serem avistadas.

Olhando para o alto - num pinhal maduro, é assim que tem de ser - podiam-se observar, regularmente ao longo do dia, grupos de chapins cabriolando de ramo em ramo. 

Entre as espécies de maiores dimensões destacavam-se os afoitos e irrequietos chapins-reais (Parus major)...



... e os chapins-rabilongos (Aegithalos caudatos), de corpo pequeno mas de cauda comprida.




Entre os de menores dimensões eram muito comuns o chapim-carvoeiro (Parus ater), de plumagem e chamamentos pouco evidenciáveis ...



... e o belíssimo chapim-azul (Parus caeruleus), de plumagem e canto delicados.




Toda esta avifauna vivia à custa de uma população significativa e diversificada de invertebrados presentes no interior da mata. 

Aranhas, mosquitos,  lagartas, mariposas, formigas, pulgões, larvas, entre muitos,  abundavam na mata...como o escaravelho fitófago (Oxythyrea funesta) que se deliciava por entre as pétalas do sanganho-mouro (Cistus salviifolius)...




... pois a poluição do ar ainda não tinha atingido níveis gravosos para este grupo de sensíveis seres.


Praticamente todos os troncos de pinheiro eram revestidos de líquenes, como Usnea subfloridana e Parmelia sp., atestando essa pureza do ar no interior das matas. 



Também os extensos tapetes de musgo que cobriam o solo do pinhal representavam um bioindicador da riqueza do mesmo em nutrientes.




Frequentemente surgiam por entre os pinheiros-bravos, outros agrupamentos arbóreos e arbustivos, com melhores características para atrair e abrigar presas e predadores. Estes agrupamentos botânicos representavam, pois, focos promotores da biodiversidade florestal.


Exemplares de carvalho-alvarinho (Quercus robur) ...




... grupos de loureiros (Laurus nobilis), mais ou menos adensados ...



... e robustos exemplares de choupo-negro (Populus nigra), cumpriam perfeitamente esse desiderato.



Sempre que o nível da toalha freática se abeirava da superfície do solo, a queda de chuva, por pouca que fosse, originava a formação de pequenas charcas. Nestas podiam-se encontrar girinos de alguns anfíbios, como tritões e sapos



Em redor destas depressões encharcadas surgiam árvores e arbustos bem adaptadas à água, como choupos (Populus sp.), amieiros (Alnus glutinosa), salgueiros (Salix sp.) e junco (Junco sp.).


Estes oásis no meio do pinhal constituíam um pólo de fixação de insectos, caracóis e demais invertebrados, como a lesma-preta (Arion ater).




Por seu lado, esta disponibilidade alimentar permitia a ocorrência de insectívoros, como o ouriço-cacheiro (Erinaceus europaeus).





(continua)