sexta-feira, 22 de julho de 2022

O Êider - edredão

 




O êider - edredão (Somateria mollissima) é um pato robusto, comparativamente, um pouco maior que o familiar pato-real. 

De pescoço mais atarracado e com um bico muito mais robusto, em forma de cunha, o macho adulto, na época da reprodução, é uma ave belíssima, em que o preto dos flancos, do abdómen e da coroa contrasta com o branco da restante plumagem. E para que esta libré seja decididamente notória, estes machos apresentam ainda o pescoço tingido de verde esmeralda. 

As fêmeas, pelo contrário, apresentam sempre uma plumagem castanha escura, em que o branco aparece timidamente nas orlas das penas de cobertura.

Durante os meses de Verão, os machos adquirem uma plumagem de eclipse, ficando com a plumagem escurecida, restando-lhes apenas algumas manchas brancas nas asas, peito e abdómen.




Ao contrário do pato-real (Anas platyrhynchos), que pertence ao grupo dos denominados patos de superfície, dado alimentar-se à superfície da água ...



 ... o êider-edredão pertence ao grupo dos patos mergulhadores, pois para obterem o seu alimento necessitam de mergulhar, dado que a sua dieta é baseada em crustáceos e moluscos, habitantes dos fundos marinhos.


Por estas razões, também os distingue o habitat que exploram. Ao contrário do pato-real que vive em águas doces, baixas e interiores, como rios e lagos, o êider - edredão é uma espécie que vive sobretudo ao longo das costas, onde encontram o seu alimento.



Outra característica comportamental que diferencia estas duas espécies tem a ver com a forma como as aves levantam voo. Enquanto o pato-real, quando ameaçado ou assustado, levanta rapidamente, quase na vertical, ...




... o êider, ergue o corpo acima da água, bate insistentemente as asas e inicia de seguida uma corrida sobre a superfície, antes de se elevar no ar e encetar um voo pesado e por conseguinte muito mais lento.



Como se pode verificar pela foto acima, esta ave possui uma densa e fina plumagem no peito, a qual era aproveitada pelos Vikings para o enchimento de cobertas grossas (edredons) para protecção contra o frio árctico. Daí o justificativo do seu nome. 

Para criar, o êider-edredão fá-lo em colónias, situadas na faixa marítima ou em águas interiores próximas da costa. A época de cria começa no início de Maio, nas colónias mais a sul, e em meados de Junho, nas colónias mais setentrionais. A espécie tem uma única postura, que varia em média entre 4 a 6 ovos, e que a fêmea se encarrega de chocar sozinha, durante 24 a 27 dias. 


Esta espécie nidifica na Europa e na América do Norte a altas latitudes. Na Europa fá-lo na Gronelândia, Islândia, nas costas e ilhas do Árctico e do Mar do Norte, bem como, nas costas escandinavas do Báltico. Núcleos menos numerosos localizam-se nas costas da Dinamarca, Holanda e Alemanha. Durante o Inverno dispersa-se para sul, sendo frequente ao longo da Bretanha, Normandia e costas do norte de Espanha.




(adaptado de Svensson, L., A.&A.2012)



Apesar do mapa não o mencionar, em Portugal a espécie é considerada acidental. Existem, de facto, alguns registos de observações de indivíduos isolados ou em números muito reduzidos, ao longo de toda a faixa costeira, mas sempre durante o período invernal. 

Assim sendo, com os intervenientes aqui documentados fotograficamente, poderíamos pensar nalgum casal a habitar numa qualquer costa da tundra escandinava ou islandesa. Mas, não. 

As fotos dizem respeito ao primeiro registo, conhecido, de um casal, que apesar de não ter apresentado evidências reprodutoras, permaneceu até meados de Julho (pelo menos!) na costa norte de Portugal.

Razões para esta permanência tardia, a tão baixas latitudes, deverão existir, por certo. 


terça-feira, 5 de julho de 2022

O rio (V)






(continuação)



Face à topografia dos terrenos, o rio vai formando frequentes remansos. As levadas e os ribeiros subsidiários, formam também habitats de águas muito pouco movimentadas. 




Estas águas são especialmente atractivas para os insectos, nomeadamente para aqueles que vivem sobre a água, como os alfaiates (Gerris lacustris).



E se os insectos abundam, os seus predadores também para aqui são atraídos. Inclui-se neste último grupo o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis), que se abriga por entre a vegetação da margem, antes de surgir à vista, sobre alguma pedra do rio.



Imóvel, este réptil, com mais de 200 milhões de anos de evolução e com uma longevidade que pode chegar aos 40 anos de vida, perscruta atentamente tudo o que o rodeia.



Para além de insectos, também se alimenta de outros invertebrados, de anfíbios, de peixes e de plantas aquáticas, submergindo, frequentemente, apenas a cabeça.



Também não é difícil observar, nadando por entre a vegetação, o belo galeirão (Fulica atra). 



Esta ave, de plumagem negra e bico branco, chama ainda mais a atenção quando, ao levantar da água, corre primeiro sobre a mesma durante vários metros.




Mesmo durante as horas de luz intensa, não é impossível observar o mocho-galego (Athene noctua), pousado nalgum poleiro destacado sobre os terrenos marginais ao rio. Esta pequena ave de rapina, com uma dieta variada, é responsável pelo controlo das populações de insectos, anfíbios e répteis.




Após várias dezenas de quilómetros a serpentear por entre serras, colinas e vales, o rio chega à extensa planície húmida, separada da foz por uma escassa meia dúzia de quilómetros. 



Fá-lo, lentamente, como se não tivesse pressa em morrer, depois de uma vida tão extensa, quanto mutante. 

Este término, vai sendo preparado, mediante a salinização crescente das suas águas. A intrusão da cunha salina, produzida em cada maré enchente, repercute-se nas características do ecossistema envolvente ao rio.


Sobretudo no interior das valas e esteiros que o rio, entretanto, originou ocorre a pinheirinha-de-água (Myriophyllum aquaticum), uma espécie invasora proveniente da América-do-sul.




Toda esta superfície encharcada, por onde o rio agora corre, é dominada por extensas manchas de caniço (Phragmites australis), ...



... e de tabúa (Typha latifolia).




Aqui se escondem, alimentam e criam diversas espécies, como patos (Anas sp.) e garças-vermelhas (Ardea purpurea).




No rio, farto de peixe que a maré enchente se encarrega de trazer, pode-se ter a sorte de observar a magnífica lontra (Lutra lutra), nadando de fugida entre as margens. Quando observada a contra-luz, o seu corpo semi-submerso e completamente estendido a deslizar sobre a água constitui um quadro repleto de emoção e beleza.




A tarde, como que se afundando de mãos dadas com o Sol, e tendo já chamado a Lua ...



... parece despedir-se deste rio, descaracterizado e sem a energia de outrora. Deste rio, que muito em breve e placidamente se entregará ao inevitável abraço do oceano. 


Omnipresente, e bem lá no cimo, o cartaxo-comum (Saxicola torquata) é testemunha deste epílogo inadiável!





sexta-feira, 1 de julho de 2022

O rio (IV)

 



(continuação)



O Verão acabou de inaugurar a sua temporada!

No seu caminho para a foz, ainda muito distante, o rio vai recolhendo águas deste ou daquele ribeiro, robustecendo desta forma, o seu caudal. Por outro lado, corre agora, por um leito de perfil mais suave, o que lhe permite ter uma menor velocidade de escoamento.

Sempre atento, desde tempos recuados, ao aproveitamento que pode fazer dos elementos da natureza, nomeadamente das águas fluviais, o homem foi construindo represas e albufeiras no curso dos rios, criando assim bolsas de água semi-paradas e de maior profundidade.



É aqui, nestas águas calmas semeadas de vegetação luxuriante, com raízes permanentemente subaquáticas, como as espadanas (Sparganium erectum) ...




... que se pode observar a galinha-d'água (Gallinula chloropus), com sua prole, procurando alimento nas margens lamacentas do rio.



Tal como tem acontecido ao longo de todo o curso do rio, as libelinhas (Calopterygidae) são presença constante. Contudo, agora, que as águas são mais calmas, outros protagonistas da família marcam a sua presença. Uma dessas novas espécies é o maravilhoso gaiteiro-negro (Calopteryx haemorrhoidalis).





Estes e outros insectos, como as abelhas e as borboletas, são atraídos pela envolvência florística do rio, em tons policromáticos, conferidos pela salgueirinha (Lythrum salicaria), ...






... pelos bons-dias (Calystegia sepium), de cor alva, menos frequentemente rosados, ...






... ou pela angélica (Angelica sylvestris), com suas sumptuosas umbelas . 




Nas margens preenchidas por densa vegetação arbustiva, surgem vários núcleos de canas (Arundo donax). Esta antiga espécie invasora não deixa, porém, de constituir um óptimo local de abrigo e repouso para os passeriformes.




Também é nestas águas pouco movimentadas que as diversas formas larvares de peixes, insectos e anfíbios encontram as melhores condições para se fixarem na vegetação submersa do fundo. 

Por esta razão, é frequente surgir nestas paragens um outro personagem, que irá ser presença constante rio abaixo. O Guarda-rios (Alcedo athis). 

Uma verdadeira jóia cromátrica, que viaja no ar como um autêntico dardo e mergulha atrás da presa submersa como um verdadeiro arpão. 


Vale a pena contemplar, demoradamente, este pequeno pássaro e maravilhoso pássaro. 

Primeiro, chega rápido e pousa num posto de vigia, que habitualmente é um ramo pendente sobre a água ou o murete da represa do velho moinho. 




Depois, fica a observar atentamente o rio, até que de repente, se eleva no ar e mergulha velozmente para perseguir o pequeno peixe alvo da sua escolha. 




E esta sequência é repetida vezes sem conta ao longo do dia.


Enquanto o guarda-rios se ocupa da sua pescaria, o coaxar da rã-verde (Rana perezijunto à margem, não deixa ninguém indiferente. 

Sobretudo a partir do meio da tarde, quando o Sol moderou o seu ardor, as vocalizações dos machos em cio, ampliadas pelos sacos vocais que se lhes projectam dos lados do focinho, constituem uma verdadeira sinfonia.



Refira-se que as rãs, presas fáceis da lontra, das garças, das aves de rapina e das cobras-d'água, são por sua vez grandes predadores de insectos, minhocas, aranhas e até pequenos peixes, integrando, assim, o primeiro patamar dos predadores do rio.


Entre as aves de rapina diurnas, que neste sector do rio encontram alimento, destaca-se a águia-d'asa-redonda (Buteo buteo), que habitualmente estuda o seu território de caça a partir de algum ponto de vigia próximo.




Já durante a noite, são outros os protagonistas alados que assumem este papel predatório. Entre eles destaca-se o bufo-pequeno (Asio otus), muito bem escondido e perfeitamente camuflado durante as horas do dia, nos ramos altos e frondosos do arvoredo.




Ambas as espécies são devoradoras de roedores, mas não enjeitam outras presas, como coelhos, pássaros, répteis e anfíbios.


Será a partir deste momento que, o rio, até agora vivo, irá começar a sofrer transformações significativas à medida que vai atravessando vilas, cidades e zonas industriais. 

Será a partir de agora que, as suas águas passarão a receber, de quando em vez,  frequentemente sob a forma de descargas clandestinas, detritos sólidos e efluentes líquidos carregados de tóxicos, frequentemente a temperaturas que saturam o oxigénio dissolvido. 

A vida escondida no leito, no intrincado de cavidades submersas de rochas e nas próprias margens, ficará ameaçada, por este envenenamento e consequente esterilização das águas. 

Acresce a esta carga poluente, a lixiviação dos pesticidas, herbicidas e insecticidas que o homem usa de forma intensiva nos pomares e campos de cultura, próximos do rio.




O rio entrou em agonia e com ele todos os habitats e espécies que lhe estão associados.

Com menor teor de oxigénio e maior teor de nitratos e fosfatos, as águas perdem a sua cristalinidade e adquirem tons de maior opacidade. Reacções anaeróbicas e processos de eutrofização estão assim, também, na base da perda de qualidade das águas do rio.



Destes troços poluídos ausentam-se peixes, anfíbios, pássaros e répteis. Como consequência ausentar-se-ão também os predadores de topo. 



O rio não estará totalmente morto, mas, perdeu muito da sua função promotora da biodiversidade. Contudo, subsistem algumas espécies que tiram partido da sujidade e da poluição humanas.

Entre estas, destaca-se a oportunista ratazana-castanha (Rattus norvegicus), que além das excelentes capacidades natatórias, consegue aproveitar quase tudo para seu alimento. 




Outra espécie, bem adaptada a meios onde os detritos abundam, e que encontra nas ratazanas, rãs, lagartos e outra bicheza morta na margem do rio, um dos muitos possíveis menus, é o milhafre-preto (Milvus migrans).



Antes de continuar a seguir o curso do rio, demoro-me a contemplar os lindos tapetes verdes de lentilhas-de-água (Callitriche stagnalis), que abrigam comunidades de pequenos seres vivos subaquáticos.





E o rio lá vai, atravessando povoado atrás de povoado.  Vence uma cascata ali, atravessa um moinho acolá ... 







...  o rio não pára!




(continua)