domingo, 30 de janeiro de 2022

O atentado, o monge e a anedota


Nas últimas semanas tem havido uma revolta generalizada da população ovarense (e não só) perante o plano de devastação de uma área significativa da floresta litoral de Pinheiro-bravo (Pinus pinaster). 

O plano do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (como se as florestas não fizessem parte da natureza mas antes de um negócio à parte!) que se pretende implantar no concelho tem a anuência da Câmara Municipal de Ovar, pois esta não terá reconhecido que se irá cometer um verdadeiro atentado ao seu próprio património natural. 

Com um presidente de Câmara academicamente formado na área do ambiente é caso para confirmar aquele velho ditado que diz que "o hábito não faz o monge". 

Enquanto o mundo se desdobra em conferências acerca do clima e da adopção de medidas para a conservação global dos ecossistemas, a Câmara Municipal de Ovar devia ter sido capaz de dialogar e argumentar com o ICNF no sentido de preservar este recurso secular. Não o fez. Uma verdadeira anedota!

E é com a plena consciência de que esta anedota se pode transformar num empobrecimento do pinhal de Ovar que, a comunidade em geral se tem movimentado para pôr cobro a esta desajustada pretensão.






sábado, 1 de janeiro de 2022

No encalço da Cabra-montês-ibérica


A manhã acordou gélida, pois a temperatura durante a noite caiu a pique. A neblina que se formou sobre os lameiros não impede que se observe, bem alto sobre a serra, um bonito céu pintado de cirros.



Começou a marcha, naquela que seria uma longa e expectante expedição, pelo coração serrano. O início aconteceu através de um bonito e longo trilho, sempre acompanhado de imponentes manchas de Carvalho-negral (Quercus pyrenaica). 



Mais abaixo, situavam-se extensas e viçosas pastagens, cortadas por muros de pedra e bordejadas por bosques caducifólios.




O destino, ainda distante, mirava-se ao longe. Os cumes aguçados da montanha constituíam um desafio ao olhar. 




A brisa matinal, cortante para a cara, combatia-se com uma passada certa e resoluta. 

Os lameiros do fundo do vale, ainda vazios a esta hora da manhã, começariam a encher-se dentro de pouco tempo de manadas de  bois, oriundas da aldeia próxima; por aqui ficariam pastando o resto do dia, embalados pelo som dos seus próprios chocalhos. 



O trilho ...  para já, vai subindo e descendo de forma moderada,  acompanhando os desníveis da ladeira.




Ao longo do caminho, Chapins-reais (Parus major), Chapins-azuis (Parus caeruleus) e Carriças (Troglodytes troglodytes), cabriolando por entre a ramagem, vão animando a expedição. 




Nos muros de pedra que ladeiam o trilho, tingidos de verde pelos musgos que os recobrem, surge repentinamente o Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), posando com seu ar tranquilo, antes de se lançar ao solo, sobre o verme que se lhe oferece mais a jeito.




Os carvalhais formam um contínuo ocre-alaranjado que, agora se nota bem, sobem encosta acima. 

Nós, também já iniciámos uma outra fase da expedição; deixámos o trilho que trazíamos, de terra batida, e progredimos num trilho granítico, de declive acentuado. 



Aquilo que cá de baixo parece ser a cumeeira tão desejada não passará afinal de uma crista secundária, dir-se-ia mesmo terciária. E esta sensação irá repetir-se uma e outra vez. 




Verifica-se também que, quanto mais se sobe, maior é o desalinho das pedras do caminho e por conseguinte maior é a energia despendida na progressão...




.. e há troços em que, por a geada da noite ainda não se ter feito água líquida, as pedras da calçada não conseguem garantir o atrito, que tanta falta faz nesta árdua ascensão.

Enfim, as dificuldades da subida começam a fazer-se sentir muito a sério!




Chega-se, por fim, a um primeiro patamar de montanha, onde a vegetação arbustiva e rasteira domina sobre a vegetação arbórea e onde o batimento cardíaco aproveita para se reajustar.



A marcha prossegue, pois ainda não se atingiu a meta desejada. Ao fundo, uma garganta na rocha tem de ser atravessada.



Ultrapassada esta estreiteza natural, eis que, se nos afigura ficarmos como que suspensos e debruçados de um altar. Um altar, projectado sobre um vasto planalto, encaixado entre montanhas, no coração da serrania. 

Algo tão belo ao olhar, que as palavras não o conseguem descrever.



A primeira e predominante sensação é a de vislumbrarmos um vale sem póvoas, sem mácula antropogénica, selvagem! Para lá deste, ficam cumeeiras ainda mais altas do que aquela em que nos encontramos. 



Gastamos muitos minutos a olhar este vale mágico em toda a sua extensão. Uma Águia-real (Aquila chrysaetos) surge por cima desses altos cumes, numa aparição fugaz, pois rapidamente atrás dos mesmos desapareceu. 

Esquadrinhando minuciosamente o cenário que se nos oferece descobrimos, mimetizados na escura paisagem da serra, uma manada de garranos, pastando tranquilamente. 

Que maravilha de visão, estes cavalos de uma raça autóctone, outrora de trabalho, hoje vivendo livres na serra!



Sentado sobre o lajedo que começava a ensombrar, devido ao aparente trânsito solar, contemplava demoradamente este acicate visual. Dali, o olhar varria todas as paredes e cumes visíveis, na esperança de vislumbrar as cabras-montesas. Mas, apesar do muito esforço e do recurso aos binóculos, nada feito. Não se conseguia encontrar vestígios de uma única cabra.

Com uma ponta de desalento na alma decidiu-se continuar a avançar de forma a explorar novos rincões da montanha. Esta decisão valeu, no imediato, fazer levantar três Narcejas (Gallinago gallinago), bem escondidinhas no espesso mato do barrocal. O seu voo rápido e ruidoso deu um alento suplementar para aquilo a que nos propúnhamos. 


Após uma descida na direcção do vale, sempre na companhia amiga das mariolas ...



... fez-se, pouco depois, uma nova paragem para escrutinar a montanha. Novos cumes se tinham tornado visíveis. 

Olhámos, olhámos, olhámos ... e de tanto vasculhar todas aquelas paredes verticais, eis que, os binóculos permitem a visão tão esperada. 

A recompensa daquela árdua ascensão tinha sido alcançada! 

Uma meia dúzia de fêmeas de Cabra-montês-ibérica (Capra pyrenaica) destacavam-se sobre um cume distante, deitadas na rocha aquecida pelos fracos raios do Sol de Inverno. 



À medida que nos íamos deliciando com esta surpreendente visão surge, sobranceiro, um macho adulto junto das fêmeas. A imponência da sua armação destacava-se mesmo àquela distância!



O rebanho das cabras, entretanto, começa a aumentar, pois outras fêmeas vão surgindo detrás da montanha. Em pleno cio, o rebanho é controlado pelo macho dominante, que sempre muito próximo das fêmeas impede que outros machos se aproximem delas.



Todo este cenário, maravilhoso, embora registado a uma distância considerável, proporcionava a derradeira pincelada de bucolismo naquela paisagem selvagem da serra.


Na verdade, depois de mais de um século ausente da fauna portuguesa, por extinção desde 1892 (Capra pyrenaica lusitanica), a presença da cabra-montês em Portugal - devida única e exclusivamente à política de reintrodução desta espécie em Espanha - constitui um factor de recuperação da nossa biodiversidade serrana.