quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Concheiros (VI)

 






Ao longo das semanas e ao longo dos meses, as vagas da maré enchente vão quebrando sobre as praias, em momentos diferenciados do dia e quase sempre com características energéticas igualmente distintas.




É nestes momentos, de tão elevado hidrodinamismo, que a carga sólida e por conseguinte a quantidade de conchas de bivalves por ela transportada mais se evidencia no areal.


As bucárdias, são dos exemplares de bivalves que surgem, então, em grande número. Formam uma família (Cardiidae) com várias espécies muito similares. As valvas das suas conchas são bojudas, com caneluras salientes, por vezes com espinhos.


O berbigão-de-bicos (Acanthocardia aculeata), apresenta espinhos fortes e curvos nas caneluras da zona média da concha e um pouco mais pronunciados e rectos na zona posterior da mesma. A cor da concha é branca-acastanhada. A espécie habita os fundos arenosos desde os -10 m até às profundidades dos andares circalitoral e batial.





Acanthocardia echinata, possui uma concha mais pequena que a espécie anterior, de cor acastanhada, e na qual, das caneluras saem espinhos de igual tamanho, frequentemente sob formas tuberculares. Vive nos fundos arenosos, desde os - 10 metros até fundos batiais. 


O efeito erosivo da água e sobretudo o desgaste produzido pelo constante rolamento das conchas dificulta e muitas vezes impossibilita a identificação das diferentes espécies desta família, pelo desaparecimento de pormenores fundamentais da sua morfologia. 




Muito comum nos areais, é o berbigão (Cerastoderma edule), arrastado pelas correntes marinhas, desde os estuários e lagunas costeiras próximas. Com uma concha ainda menor, caneluras mais largas que os espaços entre as mesmas, de cor castanha esbranquiçada ou amarelada, vive em fundos de areia, vasa e cascalho, nos andares infralitoral e mediolitoral.



O berbigão-norueguês (Laevicardium crassum), apresenta uma concha forte, de um acastanhado claro com manchas escuras, com estrias muito pouco marcadas e umbos centrados. Vive no andar infralitoral e circalitoral, entre os - 9 e os - 200 metros.




Uma outra família de bivalves, igualmente diversa mas não tão abundante, é a Veneridae.


O pé-de-burro (Venus verrucosa), possui uma concha robusta, de cor amarelada ou branca com manchas acastanhadas, com numerosas caneluras concêntricas, salientes, espessas e tuberculadas nalguns pontos. O seu habitat é o substrato arenoso e cascalhento, do andar mediolitoral e sobretudo do andar infralitoral, até - 100 metros.




O pé-de-burrinho (Venus striatula), apresenta uma concha mais pequena que a espécie anterior, com caneluras mais finas e mais apertadas. O exterior da concha é branco sujo, com manchas acastanhadas, frequentemente oblíquas. Vive enterrada em fundos arenosos ocupando os andares mediolitoral, infralitoral e circalitoral  (encontrado nos - 400 metros, andar batial).




A amêijoa-comum (Venerupis decussata), apresenta uma concha de cor variável, amarelada, acinzentada e às vezes manchada de castanho, com caneluras e estrias bem nítidas formando um padrão reticulado. Vive em fundos arenosos e vasosos de lagunas costeiras e estuários, no andar infralitoral, até -20 metros.






(continua)


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Natureza adormecida

 





O Verão apresenta-se como a estação silenciosa. 

Não, nos congestionados aeroportos, nas praias fartas de gente ou nas concorridas esplanadas das grandes cidades. 

O Verão é silencioso nos espaços campestres, nos parques citadinos e por esses montes e vales de natureza pura, selvagem.



A cidade irá acordar dentro de algumas horas, após mais uma noite de temperaturas amenas. Com ela despontarão também os seus espaços verdes.




Mal a manhã desperta, sente-se logo a ausência das cantorias sonoras e ininterruptas dos machos de verdilhão, de chamariz, de pisco-de-peito-ruivo, do melro-preto e da pega-rabuda, todos eles verdadeiros solistas durante os raiares de Primavera. 

Em seu lugar, conseguem-se captar chilreios abafados, que mais parecem ter proveniência remota. São do pardal-comum (Passer domesticus), que já deixou de andar escondido debaixo das telhas e beirados para socializar pelos campos e prados, ...



... da alvéola-branca (Motacilla alba), sempre incansável na busca de insectos, qualquer que seja o meio a explorar ...



... e da andorinha-dos-beirais (Delichon urbica), que passa a esvoaçar sobre as nossas cabeças, cheia de pressa, pois ainda tem crias para atender.




Os únicos intérpretes que destoam neste desconcertante entorpecimento matinal são as rolas-turcas (Streptopelia decaocto), ainda há duas décadas raras entre nós, mas hoje muito comuns. 

Sempre aos pares, vão lançando ternos arrulhos enquanto esvoaçam daqui para ali, desaparecendo no interior do arvoredo, sem nunca deixarem de interagir.



Nestas manhãs de Verão, que umas vezes acordam limpas, com os raios de Sol a beijarem docilmente a natureza e outras vezes, pelo contrário, com a natureza a ser subjugada por densa e sombria neblina ...




... a vida parece desenrolar-se de uma forma tranquila.


Esvoaçando baixo, de árvore para arbusto e de muro para o solo, andam os rabirruivos-pretos (Phoenicurus ochruros). Estas pequenas, escuras e tímidas aves, apesar de apresentarem uma vocalização repetitiva e bem audível noutras ocasiões, passariam de certa forma despercebidas caso não fosse a frequência com que, perturbadas, esvoaçam para um novo poiso próximo.

   


Calmamente, sem pressas, sem alarido, apenas com a ajuda daquelas tardes em que o vento sopra um pouco mais rijo, as que chegaram mais depressa a velhas começam a tombar sobre o verde, que acolherá muitas outras quedas ao longo dos próximos meses.




Este episódio parece algo extemporâneo, mas não o é. 

A quentura que nos obriga ao resguardo de uma boa sombra e à necessidade imperiosa de hidratação, como garantia de sobrevivência, é a mesma que vai desgastando a natureza, de tal modo que, o que era antes ...



... deixou de o ser agora, volvidos três meses.




Depois de uma Primavera, também ela, brindada com o frequente matraquear desses poderosos bicos, agora calados, da cegonha-branca (Ciconia ciconia), é ainda possível vê-la, dispersa pelos campos, em silêncio, à procura de répteis, roedores e invertebrados, desprevenidos ...



... ou, então, planando calmamente, bem alto nos céus, à boleia das correntes térmicas.




A quietude parece ser a imagem de marca da estação, independentemente do lugar onde nos encontremos. 


Na praia, onde o povo procura o retempero de energias antes de regressar à rotina laboral, até as gaivotas-de-patas-amarelas (Larus michahellis), extraordinariamente ruidosas durante o período da criação, tendem agora a quedar-se deitadas no areal.




E se o areal dista, procuram a conquista de um poiso destacado, onde permanecem longamente numa surpreendente mudez.




Apesar da mudez ser uma constante em todos os estádios da sua vida, répteis e insectos parecem demonstrar em meados do Verão, uma ainda maior serenidade nos seus comportamentos. 

Os primeiros, como que petrificados sob o sol ardente, procuram estabilizar a sua temperatura corporal, como a lagartixa-de-Bocage (Podarcis bocagei).



Quanto aos segundos ... aquele esvoaçar frenético de Abril e Maio, sobre uma floração fresca e atraente, é substituído agora pelo simples desfrutar da energia que ainda vai brotando dessa mesma vegetação, cada vez mais seca e  desfigurada.

Um gozo efémero para muitos deles, pois dentro de algum tempo serão obrigados a hibernar, como acontecerá com a maculada (Pararge  aegeria).




Mudando de meridiano, mudamos de bioma ... 

Nas terras quentes do interior, a quietude estival parece ainda mais gritante, apesar da grande biodiversidade existente.

Bandos de grifos (Gyps fulvus), pousados nas cornijas dos seus dormitórios observam em completo silêncio a vasta planície que os rodeia.



Chapins-azuis (Cyanistes caeruleus), no inferno das primeiras horas da tarde, enfrentam as altas temperaturas procurando as sombras e abrindo os bicos para termorregulação corporal.




O melro-azul (Monticola solitarius), esse senhor dos barrocais, sempre próximo de alguma reentrância da rocha, onde encontra sombra e abrigo, parece ter esquecido os seus sonoros chamamentos.




Até a cotovia-de-poupa (Galerida cristata), deixou de assobiar, como tão bem o fazia ainda há bem pouco tempo.




Mas, lá diz o ditado, não haver regra sem excepção. 

E no que toca a este adormecimento estival, a excepção pode muito bem passar pela chegada de uma horda desses vagabundos, que surgindo de quando em vez, e que embora não se demorando muito em cada local, não param um instante sequer de vocalizar. Exóticos na sua origem e no seu comportamento, são os atraentes bicos-de-lacre (Estrilda astrild).




Nestas terras secas e quentes, o Verão, é também o tempo da maturação silenciosa da fruta. Luzidia e doce de tanto açúcar, é uma tentação, uma sublime sobremesa, para uma diversidade de seres selvagens, que não precisam de cantar para a colher, como a ruidosa, agora quase silenciosa, pega-azul (Cyanopica cyanus).




À tardinha, tanto na cidade do litoral como na campina do interior, depois de um dia bem aquecido, agora ligeiramente refrescado por uma ligeira brisa a soprar morna, as correntes térmicas geradas elevam facilmente os seres mais leves e mantêm suspensos os mais pesados. 

É então, que lá bem do alto, se conseguem captar, os ténues chamamentos dos incansáveis andorinhões-pretos (Apus apus) perseguindo os densos bandos de insectos.





Insectos que parecem ser suficientes para ocupar uma boa parte da troposfera.

E é assim que, no bosque e nas proximidades da água, esta serenidade de fim de tarde é quebrada pelo som angustiante dos incontáveis batimentos das frágeis asas dos mosquitos (Culicidae), que já entraram em rodopio a esta hora do dia.





   

A tarde continua a cair, tal qual a manhã se foi erguendo. Serena. 

Apesar da luz ambiente ir diminuindo, o ar continua incendiado. Os sons não se fazem ouvir. A natureza já se dispôs adormecer.




Constata-se, que o Verão não combina, de todo, com grandes esforços, nomeadamente com os produzidos pelo aparelho fonador dos seres vivos. 

O Verão parece, antes, ser um período no calendário, em que a natureza de uma forma geral, aproveita para fazer uma pausa. 

Uma pausa para o silêncio.




sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Concheiros (V)


 



(continuação)


Entre todos os seres vivos que arrojam à costa são os bivalves, que sem dúvida, dominam em número, a linha de maré das praias arenosas.



A sua designação advém do facto de possuírem uma concha de duas valvas, onde se encontra encerrado o corpo. Possuem órgãos sensoriais, nomeadamente vários olhos, brânquias e um pé com funções escavadoras. São animais filtradores.



As arcas caracterizam-se por apresentarem valvas alongadas, de forma quase rectangular.

A arca de Noé (Arca noae), a maior da família, possui uma concha em forma de barco, de cor castanha manchada de claro e com os umbos afastados. Esta espécie vive sobre substractos rochosos afastados da linha de costa.





As castanholas, formam um grupo que apresenta conchas de grande dimensão e de formato quase circular.


Glycymeris glycymeris, possui uma concha com manchas castanhas características, vivendo enterrada na areia, no cascalho ou em fundos lodosos do andar infralitoral, até - 80 metros.




Glycymeris bimaculata, maior que a espécie anterior, apresenta uma concha uniformemente acastanhada, vivendo também em fundos arenosos e lodosos do andar infralitoral.




A madrepérola (Anomia ephippium), assemelhando-se a uma pequena ostra, apresenta uma valva inferior fina, plana, com uma abertura e de cor esbranquiçada ou amarelada, quase translúcida. Esta espécie, que se adapta perfeitamente ao relevo do local onde se fixa, vive sobre rochas e conchas, em povoamentos de mexilhões e ostras nas zonas média e inferior do andar mediolitoral e em povoamentos mistos de mexilhões e algas no andar infralitoral.





Os mexilhões formam uma família muito comum no litoral, quer em zonas muito batidas pelas vagas, quer em águas calmas dos estuários e dos portos. Para se alimentarem, os mexilhões filtram a água a uma média de 70 litros por dia!

Desta família distingue-se o Mytilus edulis, com uma concha estreita e comprida, de cor negra-azulada, às vezes com marcas castanhas. A espécie vive incrustada sobre as rochas, das secções média e inferior do andar mediolitoral e no andar infralitoral, até - 8 metros. 




As formas jovens vivem nas zonas de maior dinamismo, entre comunidades de algas. As conchas de mexilhão constituem, frequentemente, substrato para a fixação de poliquetas da família Serpulidae, ... 



... bálanos e outros.





A família Ostreidae apresenta, apenas, duas espécies nas águas europeias.

A ostra fêmea (Ostrea edulis), de concha arredondada, cinza acastanhada com manchas violáceas, habita o andar mediolitoral inferior e principalmente o infralitoral, até - 80 metros, fixando-se sobre rochas e pedras. 




ostra portuguesa (Crassostrea angulata), com concha alongada, de cor acastanhada com manchas violáceas, vive em substrato rochoso no andar mediolitoral, dado conseguir suportar maiores variações de temperatura que a espécie anterior.






Outro grupo de bivalves que apresentam conchas muito bonitas na forma e nas cores é o grupo das vieiras. As vieiras apresentam uma valva convexa, que assenta no leito e uma superior, plana ou ligeiramente convexa, revestidas de caneluras. De cada lado do vértice das conchas existem duas protuberâncias, uma para cada lado ("orelhas").



Pecten maximus, é a espécie portuguesa que atinge maiores dimensões. A sua valva superior é de cor vermelho-tijolo, com caneluras de secção arredondada, ...



... enquanto a sua valva inferior é de cor branca-acastanhada.




Esta espécie vive no andar infralitoral, em leito arenoso ou cascalhento.



A concha de Santiago (Pecten jacobaeus), é semelhante à espécie anterior, no aspecto e dimensões, diferenciando-se por apresentar as caneluras de secção quadrada. Partilha o mesmo habitat da Pecten maximus




Chlamys varia, apresenta uma concha oval, com as duas valvas convexas e de cor variável, vivendo no andar infralitoral, até - 80 metros, entre comunidades de mexilhões e algas.




Chlamys opercularis, tem uma concha de forma arredondada, valvas convexas, mas com caneluras pouco salientes. A sua cor é também variável, podendo apresentar manchas ou estrias. Vive em cascalho, vasa e areia no andar circalitoral, até - 200 metros.





Os astartídeos, são pequenos moluscos bivalves que habitam nos fundos arenosos e lodosos.

Astarte sulcata, apresenta uma concha lustrosa, preenchida por nervuras concêntricas e na qual o perióstraco castanho-esverdeado deixa frequentemente a descoberto, o branco calcário da concha. Vive no andar infralitoral, entre os -10 e -20 metros.




Loripes lacteus, com sua pequena concha, fina e arredondada, vive debaixo de areia e cascalho, no andar infralitoral até -150 metros.




(continua)