quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Verão na albergaria das gaivotas : o regresso

 






(continuação)


Observo os parapeitos vazios, de onde outrora, com apenas três semanas e ainda sem saberem voar, as crias de airo se atiravam ao mar, para darem início às suas vidas pelágicas. 




Um pouco acima destas plataformas, onde os meus olhos insistem em descobrir algum airo solitário, talvez escondido, à espera de outro parceiro para retomarem a criação, está um rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros) à espreita, pousado num bloco encravado entre duas paredes graníticas. Este pequeno pássaro, muito comum no continente, nidifica também por aqui. 




Está na hora de regressar, pois a tarde vai adiantada. 

Retorno ao trilho e ao passar sobranceiro a um novo carreiro, deixo cair o olhar sobre o mesmo.


Um imaturo de gaivota-de-asas-escuras (Larus fuscus) esvoaça sobre a água, procurando qualquer pedaço de sustento. Esta espécie ocorre aqui como nidificante, embora em número muito reduzido.


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Não restam dúvidas de que, o corvo-marinho-de-crista apresenta uma predilecção especial por estas águas baixas, transparentes e calmas, onde encontra alimento fácil.

Acercando-se da água, pousam numa plataforma rochosa, de onde podem observar os cardumes que nadam próximo.




Deste ponto de vigia saltam prontamente para a água para capturar a presa eleita.

Como pescadores especializados, os corvos-marinhos preferem atacar as presas quando estas entram em águas mais baixas, onde a fuga se torna mais difícil.




E tal como acontece, quer em terra quer na água, onde há uma potencial fonte de alimento, aí aparecem os oportunistas. Sempre que um corvo-marinho anda nas suas pescarias há seguramente gaivotas por perto, para tentarem beneficiar de possíveis sobras. 



São as cadeias tróficas a funcionarem no oceano!

  

Antes de me levantar da rocha, onde me tinha sentado a apreciar a vida no carreiro, olho em sentido oposto, agora que o Sol declina sobre o oceano.

É curioso. Apesar dos elementos de cada enquadramento, que fui produzindo ao longo do dia, serem sempre os mesmos - oceano a perder de vista, ruidosas gaivotas e as imponentes falésias - a sua composição é sempre tão diferente, tão sublime, que nunca cansa. 


Enquanto desço calmamente para o cais, de onde partirei dentro de uma hora aproximadamente, vou apreciando o cristalino das águas azuis-turquesa que se juntam na baía. Como já me conheço e sei ser costumeiro padecer desta tentação, iniciei a descida um pouco mais cedo, para ter tempo de nelas mergulhar e nadar, rodeado, quem sabe, por cardumes de robalos (Dicentrachus labrax) que por aqui costumam aparecer. 



Depois do banho e com o corpo refrigerado, do muito calor sentido durante o dia,  aguardo tranquilamente no cais o momento de abandonar este local mágico. Local, repleto de boas lembranças, recolhidas ao longo de vários anos e de muitas formas.



Embarco. 

O sentimento de partida não é animador, pelo que tento pensar numa próxima visita.

Mal o barco se afasta, a neblina, que momentos antes se tinha começado a formar, de forma incipiente, sobre a superfície da água,  adensa-se, criando um misticismo ainda maior em torno daquela poderosa montanha granítica, ...




... que, para mim, sempre foi e será considerada, a majestosa albergaria das gaivotas!



segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Verão na albergaria das gaivotas : a estadia (II)




(continuação)


Extraordinariamente agressivas, cada gaivota-argêntea-de-patas-amarelas defende a sua parcela territorial de outros vizinhos ou intrusos, mediante posturas comportamentais dissuasoras. 



A agitação na colónia é grande. Por vezes, no meio da confusão, os progenitores deixam temporariamente a postura, de 2 a 3 ovos, sarapintados de castanho em fundo ocre, a descoberto. 



Estes momentos são muitas vezes aproveitados pelos predadores, entre os quais, ratazanas, aves de rapina, e inclusive indivíduos da mesma espécie, que de forma fácil os ingerem. 

Vêem-se também ninhos, onde os filhotes, já crescidos e vestidos de uma camuflagem oportuna, se encontram sozinhos. 



É que nesta fase, os pais podem partir juntos para o mar, uma vez que as necessidades alimentares da família assim o justificam.


O trilho que me trouxe até aqui, continua em frente, atravessando a colónia. Continuar a segui-lo, constitui um desafio, já que um qualquer intruso será alvo de sucessivos ataques, à mediada que se vai acercando das diferentes parcelas territoriais. Eu próprio serei alvo desses ataques!




Mas, assim terá que ser, para me poder aproximar das luras, outrora, tocas do abundante coelho (Oryctolagus cuniculus), hoje, com a diminuição da sua população, locais onde as pardelas-de-bico-amarelo (Calonectris diomedea borealis), mais conhecidas por cagarras, fazem os seus ninhos. 

A movimentação das aves nestas cavidades é feita a partir do escurecer, pelo que restará à minha imaginação tudo o que, então, naquele local se passará, com o vaivém das aves entre a terra e o mar.

Contudo, uma prospecção cuidada das luras pode permitir descortinar a postura do único ovo, branco, colocado próximo da entrada.



A cagarra, de plumagem escura por cima e branca por baixo, apresenta o bico de cor amarela sendo capaz de voar, bem alto, ao contrário dos outros elementos da família. Em voo, apresenta as asas bem esticadas, reconhecendo-se um bordo preto em toda a extensão da parte inferior da asa.

Durante o dia as cagarras andam no mar, seguindo as embarcações de pesca, como as demais espécies de aves marinhas, tal como tive oportunidade de verificar durante a viagem de barco. 

Após algum tempo de permanência nesta zona, repleta de cavidades onde as cagarras criam, retorno e sigo um novo rumo, subindo uma outra encosta, até chegar a um local privilegiado, onde usufruo de vistas soberbas.



Ao contemplar o conjunto de ilhotas e de falésias abruptas, erguidas na vastidão do oceano que se me apresenta pela frente, não posso deixar de experimentar um misto de serenidade, beleza e nostalgia.

Serenidade, porque bastante afastado do centro nevrálgico da colónia de gaivotas, os seus sons estridentes, como que se diluem na vastidão de ar e mar, chegando abafados aos meus ouvidos.

Beleza, porque nada daquilo que é alvo do meu olhar consegue fugir aos cânones da harmonia que a natureza selvagem possui.

Nostalgia, porque há sempre algo, que irreversivelmente passou. Algo, que foi possível de acontecer no passado e hoje faz parte de uma saudosa história. Algo, que teve uma existência natural e que agora, por culpa do homem, já não tem condições para existir. 

São vários os motivos nostálgicos que me acodem à mente, mas há um que merece ser retido neste relato. A extinção do airo (Uria aalge), como espécie nidificante neste local.


                                 (foto de Estanislao F. de La Cigoña, 1988)

Esta ave marinha, semelhante na aparência a um pequeno pinguim, frequentadora de águas profundas afastadas da costa, costumava aqui nidificar em números que, nunca tendo sido grandes, não deixavam de ser muito interessantes. 


     (foto de Estanislao F. de La Cigoña, 1985)


Sem haver lugar à construção de um ninho, o único ovo era colocado nos estreitos parapeitos que as falésias disponibilizam. 

Contudo, o contínuo decréscimo de casais que se vinha a fazer sentir, de ano para ano, indiciava a necessidade urgente de se agir. Mas, infelizmente, quem a isso estava obrigado, não o fez! 

E assim, pela viragem do milénio, o airo extinguiu-se como ave nidificante, naquela que era a fronteira sul da sua área de distribuição em Portugal.

Fica, também, a recordação do trabalho de campo realizado durante vários anos, em paralelo com o do grande naturalista e amigo galego Estanislao F. de La Cigoña, no sentido de estudar a dinâmica desta espécie com vista à sua conservação.


(continua)


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Verão na albergaria das gaivotas : a estadia (I)

 



(continuação)


Já em terra, olho circunspecto em redor. As altas falésias, ricas em granitos vermelhos, e que me impedem de ver mais além, estão repletas de gaivotas, umas pousadas nas cornijas, ...



... outras esvoaçando infatigáveis sobre as mesmas, ...




... e muitas outras, balanceando-se nas águas tranquilas do mar.



Com o Sol a pique, começo a minha ascensão pelo estreito trilho que me conduzirá à parte mais alta deste imponente acidente geológico, com cerca de 280 milhões de anos, moldado por falhas e tectónica de placas. 


Durante a subida, vou observando os "carreiros", reentrâncias profundas nas falésias, onde o mar penetra e quando calmo, como hoje, forma deliciosas baías; quando não, sobretudo durante o Inverno, irrompe com tal violência, que o seu bater na rocha ecoa como um trovão, erodindo as covas, aqui conhecidas por "furados".

As falésias sobranceiras aos carreiros, ornamentadas com o endemismo local Armeria berlengensis, reúnem, pousados nas plataformas rochosas próximas da água, alguns indivíduos de corvo-marinho-de-crista (Phalacrocorax aristotelis). 



De menor porte que o comum corvo-marinho-de-faces-brancas (Phalacrocorax carbo), apresenta em voo, uma silhueta mais esbelta e quando pousado, por vezes, deixa ver uma pequena crista na cabeça.

A espécie constrói os seus ninhos em plataformas ou grutas na falésia, com algas e outras plantas trazidas pelo macho e que a fêmea organiza, de forma a produzir um grande amontoado orgânico.

Colonial, era outrora muito mais abundante neste local, onde construía os ninhos muito próximos uns dos outros. Com uma postura única, de 3 a 4 ovos, os juvenis estão nesta altura do ano quase aptos a voar, embora irão demorar mais algum tempo até se tornarem independentes dos progenitores.






Retomo a subida. 

Por entre as pedras que ladeiam o caminho surgem lagartixas-de-Carbonell (Podarcis carbonelli), que logo se escondem assustadas, à minha passagem. A sua menor dimensão, os ocelos azuis existentes nos flancos dos machos, a cor acastanhada do dorso e o padrão das linhas dorso-laterais  permitem distingui-la de outras espécies similares. Estes répteis parecem formar, por aqui, uma sub-espécie endémica.



Ao atingir finalmente o topo, levo com uma suave brisa nas faces e tenho a sensação de estar num outro mundo. 

Agora, compreende-se, porque lá de baixo se viam centenas de gaivotas a voarem incessantemente sobre as falésias. É que, me encontro num planalto, em que todo ele constitui uma extensa colónia, semeado de ninhos, dejectos, penas e penugens. 

Sem árvores, devido à ausência de solo capaz e à elevada salinidade do ar, toda esta carga orgânica está depositada sobre o manto herbáceo que recobre a rocha granítica, reluzente de feldspato e mica quando nua.

Se acrescentar a este habitat, singular,  as silhuetas brancas das gaivotas e a forte radiação solar do início da tarde, a paisagem adquire um tom de tal modo esbranquiçado, que faz doer os olhos. 

Efectivamente, por todo o lado se vêem ninhos de gaivotas-argênteas-de-patas-amarelas (Larus michahellis), acomodados junto a tufos herbáceos, frequentemente endemismos  ibéricos, como a  Angelica pachycarpa ...




... ou Echium rosulatum e Pulicaria microcephala.




Várias gaivotas encontram-se acocoradas nos ninhos, assentes no chorão (Carprobotus edulis) que vinga entre as rochas, chocando posturas tardias ...



... enquanto outras, de pé, vigiam atentamente os filhotes, já com alguns dias de vida. 




(continua)

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Verão na albergaria das gaivotas : a viagem

 




Zarpei bem cedo do porto de pesca, em direcção ao azul profundo do céu e do alto-mar, calmos, de uma serenidade rara a maior parte do ano, por estas bandas. 

Atrás de mim, segue uma das muitas embarcações de pesca, que do porto também saiu, e cujo destino são os melhores pesqueiros, de forma a encher o porão, antes do seu regresso a casa.



Ao sabor de uma ondulação suave, que nem meio metro tem, a navegação assemelha-se ao bamboleio de um carrocel de meninos. Melhor ainda, pois, no carrocel falta o cheiro do mar e os insistentes gritos das gaivotas, que passam a voar por cima do barco. 


Ainda nem uma milha de viagem feita e um grupo destas familiares aves, voando em linha, bem juntinho à água, fazem despertar a atenção. 




O motivo desta procissão prende-se com o acompanhamento que fazem a um grupo de golfinhos-comuns (Delphinus delphis), também eles em movimento ondulatório, que ora os descobre à vista, ora os faz submergir nas águas escuras, frias e ricas do canhão, por onde seguem.



Enquanto os golfinhos nadam para sudeste, acompanhando à distância a linha da costa, o barco onde viajo dirige-se para o seu destino, com rumo de noroeste.


Atravessar o largo canhão submarino é sempre uma aventura, muitas das vezes complicada, algumas outras terrível, mesmo. Hoje, não. 

O vento, que entretanto se intensificou e se faz sentir um pouco mais fresco sempre que a rajada surge, confere à vaga pequenas cristas, que acabam por dar contraste à negrura da água e pouco mais.

No convés, comodamente encostado à amura da embarcação, recordo outros tempos, em que fazia esta mesma travessia à custa de braços. 



Então, encafuado no poço, sentado ao exacto nível do oceano e levando com as vagas na cara, sempre que o mar crescido as fazia quebrar em cima da embarcação, assim, realizava a travessia. 

Sem estar obrigado a respirar o forte odor do gasóleo, estas sim, eram verdadeiras travessias épicas. Ao aroma da maresia era acrescida esta condição anfíbia, única, de enorme exigência física e mental, muito difícil de ser justificada ou compreendida, porque emanada do âmago de quem adorava sentir o oceano em absoluto. 

Aventura? Talvez, sina!


Acordo destas salutares recordações, com os olhos fixos neste oceano azul escuro, que nem a crescente luz dura da manhã consegue penetrar, para descobrir que além de gaivotas, também há pardelas, a baloiçarem-se sobre a água. 




Esta visão faz-me sentir entusiasmado. Sei que é um aperitivo para o que acontecerá ao longo do dia.

E o barco lá segue o seu rumo, apesar das fortes correntes marinhas parecerem decididas a contrariá-lo, adornando-o meigamente, para um e outro bordo.

Ao longe, através do horizonte turvado, pelo reflexo da luz numa atmosfera tolhida de vapor de água, já se avista imponente, emersa das águas, a montanha granítica onde irei desembarcar. No cimo da mesma, um majestoso farol, elemento da mais fina representação em qualquer pintura náutica. 



À medida que o barco me acerca deste deslumbrante quadro paisagístico, aumenta em mim o anseio de poder fazer parte integrante do mesmo.  


Antes da embarcação encostar ao cais, enquanto o motor refreia a marcha para vante e a tripulação se prepara para saltar para terra, com o intuito de prender os cabos de amarração, olho as altas falésias, iluminadas pelo Sol ardente do final da manhã. 

A algazarra ensurdecedora de centenas de gaivotas voando desencontradas é suficiente para abafar a vozearia dos meus companheiros de viagem, também eles alvoroçados com o desembarque eminente.



(continua)



segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Novas nidificações a norte do Tejo

 




Este ano registaram-se, pela primeira vez, nidificações a norte do Tejo, de duas espécies que, até há bem pouco tempo, eram de nidificação improvável em Portugal.


O colhereiro (Platalea leucorodia) é uma espécie que tem vindo a aumentar a sua regularidade e área de ocorrência, independentemente da estação do ano. 

Na Ria de Aveiro, a sua presença tem sido intensificada nos últimos anos, o que demonstra uma tendência crescente na expansão da espécie no norte do país. 




A sua nidificação, este ano, a norte do Tejo, constitui um dado de grande importância para a fixação da espécie, como nidificante, em Portugal.



A íbis-preta (Plegadis falcinellus) era um migrador pouco comum em Portugal até a alguns anos atrás. Hoje em dia, a espécie ocorre em bandos significativos nas principais zonas húmidas portuguesas, sobretudo durante o Outono, Inverno e Primavera.

Na Ria de Aveiro, a espécie ocorre em bandos de centenas de indivíduos, sobretudo durante os meses chuvosos.




A nidificação, este ano, a norte do Tejo, por parte de alguns casais são um sinal promissor para a fixação da espécie em território português.


Como acontece frequentemente entre os membros da família dos Ciconiiformes, pode-se constatar que ambas as espécies criaram na mesma colónia, podendo reconhecer-se perfeitamente, na foto, a coloração azul uniforme do ovo da íbis-preta.





Além das duas espécies de ciconiiformes referidas há uma terceira espécie (passeriforme) que nidifica anualmente, em meio urbano, a cerca de 5 Km da linha de costa, contrariando o status de nidificação que lhe é apontado (nidificante no interior do país). Trata-se da andorinha-das-rochas (Ptyonoprogne rupestris).




São, na verdade, muito boas notícias para estas três espécies!