domingo, 19 de junho de 2022

O rio (III)

 




(continuação)


Rodeado por este emaranhado vegetal, a vista vai recaindo, invariavelmente, nas águas cristalinas e agitadas do rio. Embalado, pelo som harmonioso destas águas cantantes, sou apanhado de surpresa pelo aparecimento rápido de uma ave de porte rechonchudo, escura por cima e com a garganta e peito brancos. Trata-se do garboso melro-d'água (Cinclus cinclus). 

Tenho a respiração suspensa, perante a presença deste visitante inesperado, que tem tanto de graciosidade, quanto de pouco frequente, uma vez que, nem sempre está presente em todos os cursos de água e quando está, nem sempre se deixa localizar.

Observo, sem demora, esta preciosidade!

Ao chegar, a ave poisou num tronco tombado sobre a água revelando, entre outras, a sua curta cauda.



Alguns instantes depois, esvoaça para cima das rochas que sobressaem da água ...  



... iniciando a sua operação de pesca de invertebrados, para o que, insistentemente, mergulha a cabeça dentro de água. 



Impressionantemente mimetizada, entre a falta de luz ambiente e a grande escuridão da água!

Rápido à chegada, rápido na debandada. Provavelmente hoje já não voltará a aparecer neste local.


A sombra de uma gralha-preta (Corvus corone), que passa a voar, bem alto, projecta-se cá em baixo. Vai para o local onde tem instalado o ninho, a uma vintena de metros do rio.



É sobre as águas do rio, que a biodiversidade se manifesta de diversas formas. Os insectos, elos fundamentais das cadeias tróficas deste ecossistema, abundam em número e em espécies.

A ordem Lepidoptera será, por certo, aquela cujas espécies são melhor conhecidas e apreciadas, dado o seu comportamento e distribuição na natureza. Aqui pode-se observar o esvoaçar de algumas delas, de planta em planta, alimentando-se dos néctares, graças às suas trompas. A mais comum é a malhadinha ou borboleta dos muros (Pararge aegeria).




Uma outra ordem de insectos, antiquíssima, com cerca de 300 milhões de anos de evolução, representada neste ecossistema lótico, é a das libélulas (Odonata), cujos adultos encontram aqui uma boa protecção face aos predadores. Esta ordem é formada por duas sub-ordens. As libelinhas (Zigoptera) e as libélulas propriamente ditas (Anisoptera). 


Taxonomia à parte, importa realçar a beleza cromática e a delicadeza e rapidez do voo destes invertebrados, também eles predadores de outros insectos.

Repare-se na subtileza com que uma fêmea de gaiteiro-negro (Calopteryx haemorrhoidalis), uma libelinha, pousa na porção do ramo banhado pela luz coada do Sol. 




Se não for incomodada, ali irá permanecer, pois há minúsculos invertebrados que passeiam pelo mesmo e lhe vão servir de alimento.


Noutro ramo próximo uma outra libelinha do mesmo género se galanteia. Também é uma fêmea mas de gaiteiro-ocidental (Calopteryx xanthostoma).




Mas esta última fêmea não está só. Nas proximidades encontra-se o macho.



Bonitos seres vivos!


Acompanhando o curso descendente do rio, verifica-se a continuidade, não só, da refrescante galeria ripícola, como, das inúmeras cachoeiras que os desníveis do leito proporcionam. 




Na proximidade das margens ficaram alojados os maiores blocos rochosos, que a correnteza não conseguiu arrastar.  É neles, que se criaram múltiplas cavidades, exploradas por diferentes seres do rio. Estes espaços constituem, assim, pujantes nichos de vida subaquática.



Nem sempre é fácil acompanhar o rio ao longo das suas margens. A cerrada vegetação ripícola cria, por vezes, uma intransponibilidade deveras frustrante. Nesses casos, é forçoso subir a encosta e descer mais adiante.




Cá do alto e por entre os troncos do arvoredo é possível descortinar uma ou outra Garça-real (Ardea cinerea), que por não se sentir ameaçada, vai pescando o peixe que o rio leva.





(continua)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

O rio (II)

 



(continuação)


Da aridez da rocha semi-nua, em que correu enquanto riacho, o rio desliza agora, por entre uma galeria arbustiva ...




... antecedente da galeria arbórea que se aproxima.





Uma moldura vegetal de árvores, algas, fetos e arbustos ribeirinhos encerram, assim, o cenário em que o rio corre.




É, a estas cotas mais baixas, em que a velocidade das suas águas diminui - por um lado, pela redução dos declives do seu leito e por outro, pela contribuição da galeria ripícola no controlo dos caudais - que o rio atinge o seu esplendor. Quer do ponto de vista estético, quer como ecossistema natural.



A menor turbulência das águas permite que outras espécies de peixes, como o barbo-do-norte (Luciobarbus bocagei),  encontrem aqui um habitat adequado.


Tal como antes, a lontra irá marcar presença em toda a extensão do rio, desde que factores adversos não a impeçam de tal. Por conseguinte, a presença dos grandes barbos constitui uma fonte de nutrientes para estes mamíferos carnívoros, que podem assim reforçar os seus efectivos.




Neste sector intermédio do rio, o ímpeto das águas decaiu de forma substancial, razão pela qual as rochas por ele transportadas, vindas da penedia, serem de menor envergadura.



Pese embora, a sua menor dimensão, elas cumprem, contudo, uma importante função na oxigenação das águas. É que, águas agitadas são águas oxigenadas  e águas oxigenadas promovem uma biota aquática reforçada. 

Refira-se que, a boa oxigenação das águas resulta também, embora a uma menor escala, dos processos fotossintéticos realizados pelas plantas aquáticas submersas.




Descubramos, então, a biocenose deste sector fluvial.


Sobre as rochas, revestidas de algas e onde os insectos e outros invertebrados se fixam, observam-se, à distância de um olhar, vários exemplares de alvéola-cinzenta (Motacilla cinerea), calcorreando pela procura de alimento.



Também a alvéola-branca (Motacilla alba) aparece, de quando em vez, partilhando os mesmos nichos da sua parente, sem haver sinais visíveis de competição entre ambas. 



O dossel arbóreo das margens - formado por choupos (Populus sp.), amieiros (Alnus glutinosa), salgueiros-pretos (Salix atrocinerea) e salgueiros-brancos (Salix alba), a que se juntam na encosta, pinheiros-marítimos (Pinus pinaster), alguns carvalhos-alvarinhos (Quercus robur), freixos (Fraxinus sp.) e eucaliptos (Eucalyptus globulus) - confere um ambiente de grande intimidade, já que a luz tem enorme dificuldade em banhar o solo e o rio.



É neste ambiente de penumbra, matizado por raios de luz, que se esgueiram por entre a ramagem da galeria ripícola, que podemos registar uma diversidade de outros pequenos pássaros, agitados pelo fervor da criação.


Os melros-pretos (Turdus merula), omnipresentes em quase todos os habitats possíveis, também aqui se observam, caçando vermes nas margens lamacentas contíguas à água. Contudo, é a uma outra ave da sua família que se dá um especial destaque. Menos comum que o melro, a tordoveia (Turdus viscivorus) surpreende o observador ao deixar o interior do bosque ripícola para descer até à proximidade do rio e explorar as rochas cobertas de algas.



A pequena carriça (Troglodytes troglodytes), quase passa despercebida por entre a vegetação aquática, que sobressai do rio.



Não fosse o seu chamamento, o pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), tal como a carriça, seria de difícil observação neste meio aquático, em que os tons das ramagens onde poisa pouco contrastam com as cores da sua plumagem. 




O mesmo acontece com o tentilhão-comum (Fringilla coelebs), especialmente as fêmeas que não apresentam cores vivas, e que passam facilmente despercebidas.



Neste rio, de águas escuras, agitadas e preenchidas por singelas criaturas, que sucessivamente se me oferecem descobrir, olho em redor, envolvido por esta imensa cúpula verde e sinto, inexplicavelmente, uma quietude profunda. 

A natureza encontra-se numa harmonia arrebatadora! 


(continua)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

O rio (I)








Estamos em plena Primavera! 


De um pequeno veio de água cristalina, surgido nos píncaros mais altos da montanha e que, entretanto foi engrossando, ora, com as águas das chuvas, ora, com as neves derretidas, formou-se o riacho que daqui a alguns quilómetros se chamará rio.




Caindo a pequenos saltos, de rocha em rocha ...




... o riacho não leva rumo fixo, bem pelo contrário. 

Esgueirando-se por entre as fendas que encontra e amparado pelas rochas de maiores dimensões, o seu pequeno caudal ziguezagueante não deixa de representar um convite à fixação de pequenos seres invertebrados e de se constituir bebedouro para outros tantos vertebrados da alta montanha.




O alfaiate (Gerris lacustris) é abundante à superfície destas frias águas correntes. Sendo uma espécie predadora, a sua presença indica haver uma grande disponibilidade alimentar de outros insectos e larvas submersas.




Também é junto ao riacho que vive o lindíssimo lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), outro predador de invertebrados, como escaravelhos, mosquitos, moscas, formigas, aranhas, gafanhotos e larvas de borboletas. 

Com um corpo esverdeado, sarapintado de negro, uma garganta de tonalidade azulada e uma cauda compridíssima, que pode atingir o dobro do comprimento da cabeça e corpo juntos, o lagarto-de-água é uma verdadeira jóia da natureza. 

Gastar algum tempo a admirar os seus movimentos compassados, frequentemente interrompidos por posturas de alerta, constitui momentos de enorme encanto e comunhão com a natureza selvagem. 




Imbuído por estes momentos contemplativos, a que o marulhar da água nas rochas dá um importante contributo, sou chamado à realidade envolvente, pelo chamamento da simpática cia (Emberiza cia), atarefada na procura de sementes, bagas e também insectos.


 



Não é de estranhar que, a dada altura do seu percurso, este caudal de águas cristalinas que entretanto já engrossou, correndo agora em turbilhão, caia desamparado nalguma vertigem do abismo, que a serra é pródiga em criar.



Já nas profundezas do vale, e com a ajuda de outros pequenos ribeiros que se lhe juntaram, o rio apresenta, então, uma maior corpulência de caudal e um rumo mais esclarecido, com um serpenteio muito mais amplo e espaçado, imposto pela orografia do terreno.

Estas águas furiosas, repetem o percurso de muitas outras, que ao longo de milhares de anos, escavaram o vale. Saltando por entre grandes blocos de rocha, originam zonas de grande turbulência ...




... a que sucedem zonas de acalmia .




O meio líquido formando mais de metade da composição celular dos seres vivos é indispensável, tal como o ar, para a garantia da vida!

Agora não são apenas insectos e pequenos organismos subaquáticos que nele pululam.  Diversas espécies piscícolas, como o bordalo (Squalius alburnoides), a boga (Chondrostoma sp.), a truta-de-rio (Salmo trutta) e o escalo-do-norte (Squalius carolitertii), constituem a base da alimentação de alguns outros vertebrados.


Entre os mamíferos que vivem nas proximidades do rio, há uma espécie que consegue explorar, na perfeição, as fortes correntes e turbilhões destes troços fluviais. Trata-se da lontra (Lutra lutra). 

Com um corpo fusiforme, uma pelagem isolante, patas palmadas e dedos ligados por membrana interdigital, a lontra é outra obra-prima da evolução animal, em que as excelentes adaptações ao meio aquático foram alcançadas integralmente. 




Lindo bicho, este! 


(continua)

sexta-feira, 10 de junho de 2022

A rã-verde

 





A rã-verde (Rana perezi) é a maior rã europeia nativa e o anfíbio português mais conhecido. Distribuindo-se por todo o território continental português, desde o nível do mar até às máximas altitudes, é observada na generalidade das bolsas de água doce, não poluídas ou demasiado salinizadas. 



A pele da rã-verde, como dos anfíbios em geral, é um dos seus órgãos mais importantes. Nua, permeável e húmida, é através dela que a rã efectua diferentes funções vitais, entre as quais a respiração cutânea. 

É também na pele que se encontram glândulas verrugosas, secretoras de toxinas, usadas como mecanismo de defesa contra os predadores.




É considerada uma espécie pioneira, já que coloniza facilmente habitats degradados e uma espécie bioindicador, pois devido à permeabilidade da sua pele é facilmente afectada pela poluição química das águas.




Fora da época de reprodução, esta espécie refugia-se em locais húmidos, com pouca luminosidade e densa vegetação

Com excepção dos meses rigorosos de Inverno, durante os quais poderá hibernar ou diminuir substancialmente as suas funções vitais, esta espécie de hábitos gregários, pode estar em actividade mesmo durante a noite.

Na época de reprodução é frequente vê-la, hirta, com seus grandes olhos de pupila horizontal, nos cursos de água, fontes, charcos, pequenos lagos existentes numa cidade ou mesmo sobre a vegetação aquática, deliciando-se a receber a energia do Sol. 



A época da reprodução, Primavera e Outono, coincide com os meses de chuvas moderadas e temperaturas amenas, propícias ao desenvolvimento dos embriões.

É durante este período, sobretudo a partir do meio da tarde, que se inicia uma verdadeira sinfonia junto dos habitats aquáticos, que será tanto mais exuberante, quanto maior for a superfície aquática disponível e consequentemente maior o número de cantores presentes.



O coaxar dos machos nesta altura do ano é poderoso, tanto de dia como de noite, ouvindo-se os seus sons mesmo quando nos encontramos afastados do local onde se encontram. 

Isto deve-se aos sacos vocais que os mesmos possuem dos lados da boca, que ao encherem-se de ar, como dois translúcidos balões, causam uma amplificação sonora. 




O coaxar dos machos tanto serve para atrair as fêmeas, como para, repelir outros machos. Desta forma é frequente que após um coaxar intenso se observe um macho a atirar-se a outro que esteja na sua proximidade.

Embora a cópula nem sempre seja fácil de observar, pois ocorre principalmente a coberto da escuridão, a corte começa com perseguições do macho à fêmea, esta de maior envergadura.

Fecundada, a fêmea depositará milhares de ovos em massas vegetais submersas. Posteriormente, as larvas (girinos), com uma cauda proeminente em forma de peixe, desenvolver-se-ão lentamente, atingindo a espécie uma longevidade que ronda a década.

Os indivíduos adultos alimentam-se principalmente de insectos, aracnídeos e vermes, que não faltam em habitats de grande teor de humidade.




A rã-verde constitui uma peça básica nas cadeias alimentares de diferentes espécies animais, seus predadores. 

Entre os répteis destacam-se as cobras-de água, a cobra-rateira e a cobra-de-escada. Entre os mamíferos encontram-se a lontra, doninhas, fuínhas e raposas. Entre as aves, diferentes ciconiiformes, aves de rapina e corvídeos.

 


O seu principal mecanismo de defesa contra um qualquer perigo eminente, é atirar-se à água (ouvindo-se o característico "plop") e enterrar-se no fundo.


Sobretudo nas regiões interiores do país, onde no Verão se fazem sentir temperaturas muito elevadas, as pequenas bolsas de água, nomeadamente quando paradas, aquecem a tal ponto que estes animais são obrigados a sair delas. Como a temperatura do ar é igualmente insuportável, protegem-se das fortes radiações, procurando repouso nas poucas zonas de sombra disponíveis.





quarta-feira, 1 de junho de 2022

Primavera na serra (V)





(continuação)


Uma semana depois, estou de regresso à serra. 

Desta vez, para uma expedição que irá exigir maior esforço. Não tanto em termos físicos, mas sobretudo, do ponto de vista metodológico. Durante esta última semana procurei, pois, definir cuidadosamente todos os passos que irão agora ser postos à prova. 


Entretanto, a vida pela serra continua vibrante. 



Também as condições meteorológicas mudaram e para melhor, com a temperatura a descer uns cinco graus na escala e as nuvens presentes a filtrarem a luz dura do Sol.


As lavercas (Alauda arvensis), já nossas conhecidas, continuam a marcar presença, destacadas na penedia.



Também a cia (Emberiza cia), com o seu padrão listado na cabeça, encontra nestas encostas de urze e carqueja o seu habitat de eleição, não passando despercebida quando pousada sobre uma rocha.




Da ovelha morta, que na semana anterior havia encontrado no cimo da serra, restam parcos vestígios, que o vento acabará por sumir de vez.




Olho em frente e vejo encostas cada vez mais declivosas. É para lá que me dirijo.



À medida que subo, avisto ao longe sobre uma barroca, uma silhueta inconfundível, que os binóculos ajudam a confirmar detalhes. Trata-se do melro-azul (Monticola solitarius), criatura alada dependente deste tipo de habitat.



Completamente imóvel e pousada sobre a encosta, está uma águia-d'asa-redonda (Buteo buteo). Apenas a sua cabeça gira, observando demoradamente a encosta e o vale, na tentativa de descobrir uma qualquer presa que lhe seja apetecível.



Até aqui, a caminhada foi bastante compassada, pois os encantos da serrania arrebatam e distraem. Sinto, contudo, que deveria ter sido mais lesto.  Por esta razão, acelero o passo, procuro ignorar a passarada, cujos cantos me desafiam e percorro, livre pela montanha, cerca de dois a três quilómetros até ao destino.


Ao chegar ao local predestinado, preparo a estadia, que iria ser longa. Camuflado pela própria serra, ali permaneci. Na verdade, o meu dia só agora ia começar.


Naquele posto, o silêncio era total. O ar ameno e o olhar a perder de vista  transpareciam serenidade. Apenas um rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros), surgido inesperadamente, criou algum dinamismo ao quadro.




Não terá passado uma meia hora até que a primeira e grande surpresa do dia acontecesse. E que surpresa! 

Uma marta (Martes martes) surge inopinadamente de uma cavidade rochosa. Após examinar, curiosa, o ambiente em redor, volta a entrar na toca pouco depois. Parecia ter acordado subitamente do seu sono que, pouco depois quis retomar.



Fantástica visão! Em pleno dia acabei de ter o privilégio de observar um mamífero carnívoro que, habitualmente, só sai da toca à noite.


Animado por este encontro entrei de novo em "modo de espera". O local escolhido parecia estar a corresponder ao esperado, já que o objectivo desta expedição passava, sobretudo, pela tentativa de observação  de mamíferos.


Enquanto esperava, não sabendo exactamente pelo quê, ia observando a agitação que, entretanto fora desencadeada numa parede rochosa à minha frente. Um enorme bando de juvenis de andorinha-dos-beirais (Delichon urbica) havia surgido de algum local distante e agora as aves revoavam sobre a rocha. 




Após volteios e mais volteios, algumas delas acabavam por pousar, para capturarem algum insecto alojado nos líquenes que recobrem a pedra, antes de levantarem voo, dando lugar a outras companheiras. 




Entretido com este bailado aéreo, nem dei conta da rapidez com que o tempo passou.

Volvidos um par de horas, uma intensa agitação no mato deixou-me imediatamente em sobressalto. Tive, contudo, de aguardar ainda uns minutos, uma vez que, embora a vegetação se mexesse, a causa de tal movimento não se descortinava.

Finalmente, o enigma ficou quebrado. Um javali (Sus scrofa) assume-se perante os meus olhos. Lindo animal. Fuçava, sem parar, comendo as ervas e as raízes que bem lhe agradavam.



Demorou-se o javardo ainda um bom bocado a pastar, enquanto eu me deliciava a vê-lo. Subitamente deu um galope e desapareceu no mato.


Voltei a ficar unicamente com a paisagem como companhia. Uma cotovia-montesina (Galerida theklae) deixa-se ouvir e ver no cimo de uma barroca.



Quando a deixei de ouvir, ao fim de alguns minutos de cantoria, olhei na sua direcção, mas já lá não estava.

Voltei a ficar, de novo, com o silêncio de uma fabulosa paisagem selvagem, onde soava às vezes a passagem de um vento fraco.

O tempo ia-se gastando e eu, estranhamente, continuava a sentir uma sensação de ausência, apesar das companhias que já tinham dado de si. 

Na parede rochosa, onde horas antes as andorinhas se banqueteavam, chega um pardal-francês (Petronia petronia), também com igual intenção.



Do meu pouso tinha uma visão desimpedida de uns 270 graus, sobre encostas bravias com algumas clareiras por entre os matos que as cobriam.

Enquanto perscrutava esta envolvência imaginava poder descortinar, a qualquer momento, algum corço a irromper do mato ou algumas perdizes a passarem por mim com estrépito. Mas nada. Não havia sinais de corço ou de perdizes, apenas, bem alto, passava um bútio-vespeiro (Pernis apivorus), também ele à espera de ver algo cá em baixo. 




Entrementes, vigiava a altura do Sol e de cada vez que o fazia sentia que o momento do regresso estava cada vez mais perto. 


Tinha sido um óptimo dia, brindado com registos fantásticos, mas a vontade de abandonar este lugar tão belo, não era nenhuma. E por isso decidi ficar um pouco mais.

Transcorrida cerca de meia hora, eis que, uma nova mirada ao astro-rei me impeliu definitivamente a levantar do lugar. Precisamente nesse momento, quando os músculos do corpo ainda nem sequer haviam sido mobilizados pela decisão, tive a visão superlativa!


Numa das clareiras abertas por entre o mato, vi aquilo que frequentemente me acode à mente quando vou para a serra, mas que logo deixo declinar, pela baixa probabilidade de acontecer. A visão de um lobo no seu habitat natural. 

Um dos poucos exemplares de lobo-ibérico (Canis lupus signatus) existentes em Portugal caminhava sozinho, devagar, como que saboreando o fim de tarde. Boquiaberto, mas consciente de que o momento iria ser efémero, apressei-me a registá-lo. 



Num misto de felicidade e nervosismo, nem sabia muito bem o que deveria fazer para prolongar este momento mágico

Quando o lobo desapareceu, parecia que nada mais me importava ali; antes pelo contrário, parecia-me que, quanto mais depressa regressasse a casa, mais intensamente assentaria este registo no meu subconsciente. 

Afinal, tinha acabado de estar a cerca de uma centena de metros de um dos proscritos mais perseguidos em Portugal. 


Talvez, tenha sido bafejado pela sorte ou merecido ser abençoado. Contudo, duas semanas antes, muito próximo deste local, tinha encontrado a pista que me trouxe hoje até aqui. Excrementos de lobo.




Voltei para casa numa enorme felicidade!