sábado, 24 de junho de 2023

Muros de pedra

 






A subida das temperaturas e o aumento da secura do ar intensificam-se ao ritmo da marcha dos dias. 

O céu, frequentemente coberto por um tecto denso de nuvens, já lá vão algumas semanas, e os poucos chuviscos caídos no final da Primavera, parecem ter contribuído para este estado climático. 

Ademais, o calendário assinala já ter começado o Verão!


Sabe bem, por estas razões e por estes dias, trilhar um passeio a coberto da fresquidão oferecida pelos carvalhos, castanheiros e demais caducifólias, que entalando o caminho, se encontram repletas não só de folhagem, ... 



... mas também, de maravilhosas cantorias, como a do pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), ...




... de voos ziguezagueantes dos insectos, como os da borboleta-dos-muros (Pararge aegeria) ...



... e desse tão inebriante cheiro a clorofila!


Muito próximo daqui passa um ribeiro que fornece humidade ao ar, aos solos e aos seres vivos.





A sombra que se entranha no corpo é deveras reconfortante, mas há algo na envolvência que nos estranha. 

Há algo que parece não se ajustar ao registo que a mente guarda do local. Tenta-se compreender esta percepção. 


De encosto ao muro que ladeia o caminho olha-se em redor, à procura de evidências.  

Do interior do verde que domina o sub-bosque espreitam vivas, algumas rosas (Rosa sp.) ... 



... e outras, muitas mais, alvas flores da exótica e invasora erva-da-fortuna (Tradescantia fluminensis).



Mesmo ao lado, na beira do caminho, juntinho à base do muro, erguem-se imponentes dedaleiras (Digitalis purpurea), com suas atraentes corolas púrpuras.



Estava a ser difícil de interpretar tal estranheza , até que, um movimento natural da cabeça nos coloca diante dos olhos - os muros de pedra.

Sim, os muros que nos acompanham, embora sombreados pelas frondosas copas não escaparam à secura do calendário.


As imponentes heras, que deles pendiam, secaram. 



Os musgos, que recobrem os blocos de pedra, parecem sumidos. 


Os fetos, que rebentaram por entre as fendas, iniciaram já um processo de amarelecimento. 



Várias flores, que coloriam a ladeira que desce até ao ribeiro, perderam as cores e outras secaram por completo.  


É este ar decrépito que a natureza começa a apresentar, que nos faz sede. Sede, não só de um reconfortante gole, mas da recordação daquele mesmo local, dois meses antes.


(continua)


quinta-feira, 22 de junho de 2023

Concheiros (II)


 



(continuação)



Entre os animais marinhos que arrojam aos areais contam-se aqueles que pertencem ao segundo maior filo do reino animal - os moluscos. 

Os moluscos apresentam um corpo mole não segmentado, uma rádula (placa de dentes usada para raspagem das algas fixas às rochas e para a perfuração das conchas), uma cabeça geralmente bem desenvolvida, com tentáculos e um pé musculado. 

Espalhados sem vida, na grande maioria das vezes reduzidos às suas conchas calcárias vazias, que ao longo dos tempos constituíram testemunhos fósseis do seu processo evolutivo, os moluscos estão divididos em várias classes, três das quais (gastrópodes, bivalves e cefalópodes) estão bem representadas nos achados habituais. 


Os gastrópodes, que representam a principal classe, possuem, por norma, uma concha de uma só valva, espiralada e frequentemente revestida de madre-pérola no seu interior. 


Uns, têm como habitat preferencial o estrato rochoso, alimentando-se de algas microscópicas, por raspagem. Estão nesta situação a orelha-do-mar, as lapas, os burriés e os caramujos.


A orelha-do-mar (Haliotis tuberculata), que possui uma fiada de orifícios na sua concha, habita no andar infralitoral e mediolitoral inferior, geralmente debaixo de pedras ou nas fendas dos rochedos



Entre os gastrópodes raspadores destaca-se o género Patella (lapas), pela diversidade de espécies que são encontradas nas praias portuguesas. Em geral, todas apresentam uma concha cónica estriada, com a forma típica de chapéu chinês.


A lapa (Patella vulgata), distribui-se em zonas de grande exposição marítima da zona média do andar mediolitoral. 

O interior da sua concha é de cor branco creme, com uma mancha escura. Dada a altura e largura da concha, é comum fixarem-se na parte externa da mesma alguns organismos marinhos, como cracas, bálanos e pequenas anémonas. 




Patella aspera, com uma concha mais achatada, ocupa o andar mediolitoral inferior e infralitoral superior. O interior da sua concha é de um branco com tons alaranjados, apresentando bandas escuras somente junto ao bordo.



Patella intermedia, com uma concha não tão alta como a da P. vulgata apresenta manchas radiais escuras mais compridas que esta, tanto na parte interna como na parte externa da concha. Vive muito exposta na zona média do andar mediolitoral. 



A Patella coerulea apresenta o exterior da concha de um verde acastanhado e o interior muito brilhante, com barras escuras de grande extensão. Habita superfícies de rocha predominantemente horizontais, nas zonas média e inferior do andar mediolitoral. 



Patella rustica, apresenta a parte externa da sua concha de cor clara, com pontuações negras segundo bandas concêntricas. O interior da concha apresenta uma cicatriz bastante clara e nas bordas listas radiais escuras. Ao contrário da espécie anterior é uma residente de superfícies verticais, nomeadamente em esporões e paredões, vivendo no andar mediolitoral superior.




Como referido anteriormente, um outro grupo singular de raspadores é aquele que engloba os burriés e os caramujos. Estes seres, de coloração viva e muito variável, inclusivamente dentro da mesma espécie, apresentam conchas de secção circular e forma cónica. Além de viverem sobre as rochas, alguns podem viver também escondidos em fundos arenosos e outros, ainda, entre algas e ervas-marinhas.


O burrié (Gibbula umbilicalis), vive sobre substracto rochoso nas zonas média e inferior do andar mediolitoral. Apresenta uma bonita concha com bandas largas de cor vermelho-púrpura.



Gibbula magus, com sua concha mosqueada de vermelho róseo e tubérculos nas voltas, vive em fundos vasosos do andar infralitoral, até -10 metros.



O caramujo (Monodonta lineata), que apresenta uma concha cinza com bandas de cor rosada, vive em substracto rochoso, na zona média do andar mediolitoral.


 

Calliostoma zizyphinum, apresenta uma concha cónica, muito pontiaguda, com manchas verticais acastanhadas. Habita os fundos arenosos e rochosos dos andares mediolitoral inferior e infralitoral, até - 100 metros.



(continua)


sexta-feira, 16 de junho de 2023

Concheiros

  







A forte agitação marítima, que se reflecte numa maior altura e força das vagas, é um fenómeno oceanográfico com implicações, não só ao nível do litoral emerso, como também, sobre os fundos submersos.

Após a ocorrência destes episódios de elevada carga energética, é possível observar, numa simples caminhada ao longo do litoral e durante a vazante,  jazidos, uma diversidade de seres marinhos ou, mais propriamente, de restos dos mesmos, por entre a multitude de calhaus rolados que atapetam o areal próximo da água. 



Outras vezes, porém, o material orgânico arrastado por um mar mais bonançoso, não chega quebrado em pequenos pedaços, mas pelo contrário, inteiro ou quase, permitindo a fácil identificação das espécies encontradas.




No que diz respeito às plantas marinhas, são vários os troços arrancados aos fundos submersos, pela força da ondulação e pelas correntes geradas, e transportados para a praia depois de mais ou menos tempo a flutuarem. 




Antes de se partir para a grande aventura de descoberta e identificação dos organismos que o mar atira para o areal da praia, convém olhar para os fundos marinhos, habitat desses mesmos seres, à luz da estratificação e classificação proposta pelas ciências do mar. 

Assim, considera-se que o sistema litoral é constituído por quatro andares ou seja por quatro zonas, cada uma das quais com características ecológicas muito específicas, que condicionam a ocorrência de determinadas comunidades em detrimento de outras. 





Apesar de, na realidade, as espécies arrojadas às praias e pertencentes a diferentes famílias, classes, filos e reinos se encontrarem misturadas de forma aleatória, aqui serão mencionadas seguindo uma abordagem sistemática. 

Comecemos, então, esta exploração.


Entre as espécies vegetais que se observam espalhadas pelas praias destacam-se as algas. Estas plantas talófitas clorofilinas, que precisam da luz para poderem assimilar o carbono dissolvido na água, distribuem-se até profundidades de cerca de -80 metros.

As algas, que simultaneamente constituem substrato e abrigo preciosos para diversas comunidades de seres marinhos, agrupam-se em diferentes classes.

As algas castanhas (Phaeophyta), designação que é devida ao facto de possuírem pigmentos dessa mesma cor, são as mais comuns sobre o areal. Neste grupo de algas destacam-se duas famílias, a das laminárias e a das bodelhas.

A laminária (Saccorhiza polyschides), com um talo que pode atingir os 3,5 metros e uma estipe helicoidal junto à base, vive fixa a rochas batidas, formando povoamentos no andar infralitoral e mediolitoral inferior. Oferece abrigo e alimento a diversos seres marinhos, que vivem sobre os compridos talos e sobretudo nas reentrâncias dos órgãos de fixação.




As bodelhas, tal como as laminárias, formam zonamentos no substracto rochoso, em locais de maior acalmia.


A Ascophyllum nodosum, com suas volumosas vesículas de ar, vive na parte média do andar mediolitoral.




Dos andares infralitoral e mediolitoral inferior, são arrancados os fragmentos de bodelha (Fucus serratus), que também se encontram no areal.





Uma outra espécie de bodelha (Fucus vesiculosus), vive igualmente sobre a rocha mas um pouco mais acima no andar mediolitoral.






Ao contrário da espécie anterior, esta possui vesículas de ar bem desenvolvidas, que lhe permitem flutuar e ser arrastada pelas correntes marinhas.





Outra feofícea comummente encontrada é a Cystoseira baccata, possuidora de  inúmeras vesículas, vivendo sobre rochas pouco batidas e em poças intermareais, ocupando os andares infralitoral e mediolitoral inferior.





Entre as algas verdes (Chlorophyta), possuidoras apenas de pigmentos clorofilinos, é comum achar-se a alface-do-mar (Ulva lactuca), também ela uma habitante dos andares mediolitoral inferior e infralitoral. Esta alga, que é facilmente arrancada ao substracto rochoso, flutua livremente, sendo, por vezes, arrastada para a praia em grandes quantidades.




Ainda outras, de cores avermelhadas (Rhodophyta), produzidas pela presença de pigmentos róseos, chegam à praia provindas do substrato rochoso do andar infralitoral, como é o caso da Callophyllis laciniata, com forma semelhante a folha de alface.




Deixando as plantas marinhas de lado, minoritárias em termos do número de espécies, passe-se ao registo dos animais marinhos encontrados. 


O primeiro grupo a ser aqui mencionado é o dos Cnidários. Este filo é constituído por seres simples, com corpos que se assemelham a sacos multicoloridos, com uma boca a servir também de ânus, rodeada de tentáculos urticantes. Estes seres podem-se encontrar sob a forma de pólipo e/ou medusa.


A bonita Velela (Velella velella), com seu disco redondo azul violeta e um esqueleto em forma de vela latina, que lhe permite ser arrastada pelo vento, é um hidrozoário (as formas pólipo e medusa são ambas preponderantes) epipelágico, sendo frequentemente arrastada até aos baixios das praias.



A alforreca ou água-viva (Pelagia noctiluca), é um cifozoário (a forma de medusa é a predominante no ciclo de vida) que, com sua magnífica umbela em forma de cogumelo, de cor alaranjada transparente é capaz de provocar picadas muito dolorosas. De habitat pelágico, aproxima-se da costa sobretudo durante o Verão.




É ainda frequente, encontrarem-se no meio dos concheiros, esqueletos de poliquetas (anelídeos com corpo segmentado). Entre as espécies pertencentes a esta classe de seres destaca-se a  Serpula vermicularis, que habitualmente se fixa a pedras, rochas e conchas velhas, dos andares mediolitoral, infralitoral e circalitoral.





Nalguns exemplares é possível observar, com maior clareza, a sua cor rosada e a forma como o tubo destes poliquetas está habitualmente fixo pela base ao substrato, permanecendo livre mas retorcida a restante parte do mesmo.



 

(continua)


sexta-feira, 9 de junho de 2023

Êider-edredão em Portugal

 




Continua por cá. Não só passou o Natal, como cumpre um ano de permanência em águas portuguesas.

O macho do êider-edredão (Somateria mollissima), fiel às águas onde sempre encontrou boas pescarias, continua a encantar quem o observa e a levar à reflexão sobre as razões que o fizeram não regressar ao Norte no final do Inverno do transacto ano.

A sua bela plumagem de adulto, em que apenas o verde-claro nos lados do pescoço apresentado pelos indivíduos reprodutores, está substituído por um bege, distingue-se à distância.




Enquanto neste preciso momento milhares destas aves criam azafamadamente pelas costas do mar do Norte, o êider "português" nada relaxadamente nas nossas águas temperadas.

Parece, pois, que enquanto estiver em segurança e não lhe faltarem moluscos e crustáceos para comer, ele irá continuar por cá mais algum tempo!



quinta-feira, 1 de junho de 2023

A charrela: extinta em Portugal?




              


A perdiz-cinzenta (Perdix perdix) ou charrela, como também é conhecida, é uma espécie que residiu até finais do século passado em regiões serranas do norte de Portugal tendo, a partir de então, entrado na lista das espécies dadas como extintas no país. Valeu para este negro desfecho a falta de gestão cinegética de que Portugal foi pródigo durante muito tempo. 





Há cerca de uma década houve, contudo, um registo de algumas aves avistadas em Trás-os-Montes, o que deixou em aberto a possibilidade de a espécie ainda poder sobreviver em território luso, graças a pequenos núcleos populacionais dispersos pelas ásperas serranias do norte de Portugal.


Independentemente desta possibilidade, são nos bosques e campos raianos do país vizinho que vamos encontrar esta encantadora ave.



Não é fácil detectar esta ave na natureza. Só um olhar atento a poderá descobrir, escondida no interior do matorral.



De silhueta roliça destacam-se, com maior intensidade nos machos, a face e a garganta alaranjadas, bem como, uma mancha castanha abdominal, em forma de ferradura, sob um peito cinza. 



As fêmeas apresentam uma coloração mais suave com a mancha abdominal mais pequena e mais ténue, frequentemente ausente.



Como complemento desta lindíssima libré a perdiz-cinzenta apresenta ainda os flancos estriados de castanho claro e uma cauda de cor ferrugínea.



Frequentando campos de cultivo e espaços abertos com sebes à mistura, esta ave bastante tímida, como aliás, outros elementos do grupo Phasianinae, tem um modo de vida essencialmente terrestre. Quando assustada assume, numa primeira fase, uma postura estática de vigilância...



 ... correndo rápido a esconder-se caso a ameaça aumente de intensidade. Os voos são evitados mas quando acontecem são curtos e próximos do solo, acompanhados por um ruidoso bater de asas.



É uma ave marcadamente gregária e por conseguinte os elementos do bando permanecem muito próximos uns dos outros nas suas deambulações em busca de insectos (no caso dos indivíduos juvenis), sementes (no Verão e Outono) e plantas verdes (no Inverno e Primavera).




A espécie nidifica numa concavidade do solo, forrada por alguma matéria vegetal e dissimulada em redor por ervas mais altas, de forma a camuflar os seus 8 a 23 lustrosos ovos, de cor uniforme, acastanhada ou olivácea, incubados apenas pela fêmea. 



É possível que a espécie venha a reocupar num futuro próximo as serras portuguesas. Não tanto, infelizmente, por alguma acção concertada dos organismos nacionais, sempre ausentes de políticas conservacionistas, mas sim, tal como aconteceu e acontece com outras espécies da fauna selvagem, pela dispersão das populações castelhanas junto à raia.

Que assim seja!