segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Verão na albergaria das gaivotas : a estadia (II)




(continuação)


Extraordinariamente agressivas, cada gaivota-argêntea-de-patas-amarelas defende a sua parcela territorial de outros vizinhos ou intrusos, mediante posturas comportamentais dissuasoras. 



A agitação na colónia é grande. Por vezes, no meio da confusão, os progenitores deixam temporariamente a postura, de 2 a 3 ovos, sarapintados de castanho em fundo ocre, a descoberto. 



Estes momentos são muitas vezes aproveitados pelos predadores, entre os quais, ratazanas, aves de rapina, e inclusive indivíduos da mesma espécie, que de forma fácil os ingerem. 

Vêem-se também ninhos, onde os filhotes, já crescidos e vestidos de uma camuflagem oportuna, se encontram sozinhos. 



É que nesta fase, os pais podem partir juntos para o mar, uma vez que as necessidades alimentares da família assim o justificam.


O trilho que me trouxe até aqui, continua em frente, atravessando a colónia. Continuar a segui-lo, constitui um desafio, já que um qualquer intruso será alvo de sucessivos ataques, à mediada que se vai acercando das diferentes parcelas territoriais. Eu próprio serei alvo desses ataques!




Mas, assim terá que ser, para me poder aproximar das luras, outrora, tocas do abundante coelho (Oryctolagus cuniculus), hoje, com a diminuição da sua população, locais onde as pardelas-de-bico-amarelo (Calonectris diomedea borealis), mais conhecidas por cagarras, fazem os seus ninhos. 

A movimentação das aves nestas cavidades é feita a partir do escurecer, pelo que restará à minha imaginação tudo o que, então, naquele local se passará, com o vaivém das aves entre a terra e o mar.

Contudo, uma prospecção cuidada das luras pode permitir descortinar a postura do único ovo, branco, colocado próximo da entrada.



A cagarra, de plumagem escura por cima e branca por baixo, apresenta o bico de cor amarela sendo capaz de voar, bem alto, ao contrário dos outros elementos da família. Em voo, apresenta as asas bem esticadas, reconhecendo-se um bordo preto em toda a extensão da parte inferior da asa.

Durante o dia as cagarras andam no mar, seguindo as embarcações de pesca, como as demais espécies de aves marinhas, tal como tive oportunidade de verificar durante a viagem de barco. 

Após algum tempo de permanência nesta zona, repleta de cavidades onde as cagarras criam, retorno e sigo um novo rumo, subindo uma outra encosta, até chegar a um local privilegiado, onde usufruo de vistas soberbas.



Ao contemplar o conjunto de ilhotas e de falésias abruptas, erguidas na vastidão do oceano que se me apresenta pela frente, não posso deixar de experimentar um misto de serenidade, beleza e nostalgia.

Serenidade, porque bastante afastado do centro nevrálgico da colónia de gaivotas, os seus sons estridentes, como que se diluem na vastidão de ar e mar, chegando abafados aos meus ouvidos.

Beleza, porque nada daquilo que é alvo do meu olhar consegue fugir aos cânones da harmonia que a natureza selvagem possui.

Nostalgia, porque há sempre algo, que irreversivelmente passou. Algo, que foi possível de acontecer no passado e hoje faz parte de uma saudosa história. Algo, que teve uma existência natural e que agora, por culpa do homem, já não tem condições para existir. 

São vários os motivos nostálgicos que me acodem à mente, mas há um que merece ser retido neste relato. A extinção do airo (Uria aalge), como espécie nidificante neste local.


                                 (foto de Estanislao F. de La Cigoña, 1988)

Esta ave marinha, semelhante na aparência a um pequeno pinguim, frequentadora de águas profundas afastadas da costa, costumava aqui nidificar em números que, nunca tendo sido grandes, não deixavam de ser muito interessantes. 


     (foto de Estanislao F. de La Cigoña, 1985)


Sem haver lugar à construção de um ninho, o único ovo era colocado nos estreitos parapeitos que as falésias disponibilizam. 

Contudo, o contínuo decréscimo de casais que se vinha a fazer sentir, de ano para ano, indiciava a necessidade urgente de se agir. Mas, infelizmente, quem a isso estava obrigado, não o fez! 

E assim, pela viragem do milénio, o airo extinguiu-se como ave nidificante, naquela que era a fronteira sul da sua área de distribuição em Portugal.

Fica, também, a recordação do trabalho de campo realizado durante vários anos, em paralelo com o do grande naturalista e amigo galego Estanislao F. de La Cigoña, no sentido de estudar a dinâmica desta espécie com vista à sua conservação.


(continua)


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