sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Natureza adormecida

 





O Verão apresenta-se como a estação silenciosa. 

Não, nos congestionados aeroportos, nas praias fartas de gente ou nas concorridas esplanadas das grandes cidades. 

O Verão é silencioso nos espaços campestres, nos parques citadinos e por esses montes e vales de natureza pura, selvagem.



A cidade irá acordar dentro de algumas horas, após mais uma noite de temperaturas amenas. Com ela despontarão também os seus espaços verdes.




Mal a manhã desperta, sente-se logo a ausência das cantorias sonoras e ininterruptas dos machos de verdilhão, de chamariz, de pisco-de-peito-ruivo, do melro-preto e da pega-rabuda, todos eles verdadeiros solistas durante os raiares de Primavera. 

Em seu lugar, conseguem-se captar chilreios abafados, que mais parecem ter proveniência remota. São do pardal-comum (Passer domesticus), que já deixou de andar escondido debaixo das telhas e beirados para socializar pelos campos e prados, ...



... da alvéola-branca (Motacilla alba), sempre incansável na busca de insectos, qualquer que seja o meio a explorar ...



... e da andorinha-dos-beirais (Delichon urbica), que passa a esvoaçar sobre as nossas cabeças, cheia de pressa, pois ainda tem crias para atender.




Os únicos intérpretes que destoam neste desconcertante entorpecimento matinal são as rolas-turcas (Streptopelia decaocto), ainda há duas décadas raras entre nós, mas hoje muito comuns. 

Sempre aos pares, vão lançando ternos arrulhos enquanto esvoaçam daqui para ali, desaparecendo no interior do arvoredo, sem nunca deixarem de interagir.



Nestas manhãs de Verão, que umas vezes acordam limpas, com os raios de Sol a beijarem docilmente a natureza e outras vezes, pelo contrário, com a natureza a ser subjugada por densa e sombria neblina ...




... a vida parece desenrolar-se de uma forma tranquila.


Esvoaçando baixo, de árvore para arbusto e de muro para o solo, andam os rabirruivos-pretos (Phoenicurus ochruros). Estas pequenas, escuras e tímidas aves, apesar de apresentarem uma vocalização repetitiva e bem audível noutras ocasiões, passariam de certa forma despercebidas caso não fosse a frequência com que, perturbadas, esvoaçam para um novo poiso próximo.

   


Calmamente, sem pressas, sem alarido, apenas com a ajuda daquelas tardes em que o vento sopra um pouco mais rijo, as que chegaram mais depressa a velhas começam a tombar sobre o verde, que acolherá muitas outras quedas ao longo dos próximos meses.




Este episódio parece algo extemporâneo, mas não o é. 

A quentura que nos obriga ao resguardo de uma boa sombra e à necessidade imperiosa de hidratação, como garantia de sobrevivência, é a mesma que vai desgastando a natureza, de tal modo que, o que era antes ...



... deixou de o ser agora, volvidos três meses.




Depois de uma Primavera, também ela, brindada com o frequente matraquear desses poderosos bicos, agora calados, da cegonha-branca (Ciconia ciconia), é ainda possível vê-la, dispersa pelos campos, em silêncio, à procura de répteis, roedores e invertebrados, desprevenidos ...



... ou, então, planando calmamente, bem alto nos céus, à boleia das correntes térmicas.




A quietude parece ser a imagem de marca da estação, independentemente do lugar onde nos encontremos. 


Na praia, onde o povo procura o retempero de energias antes de regressar à rotina laboral, até as gaivotas-de-patas-amarelas (Larus michahellis), extraordinariamente ruidosas durante o período da criação, tendem agora a quedar-se deitadas no areal.




E se o areal dista, procuram a conquista de um poiso destacado, onde permanecem longamente numa surpreendente mudez.




Apesar da mudez ser uma constante em todos os estádios da sua vida, répteis e insectos parecem demonstrar em meados do Verão, uma ainda maior serenidade nos seus comportamentos. 

Os primeiros, como que petrificados sob o sol ardente, procuram estabilizar a sua temperatura corporal, como a lagartixa-de-Bocage (Podarcis bocagei).



Quanto aos segundos ... aquele esvoaçar frenético de Abril e Maio, sobre uma floração fresca e atraente, é substituído agora pelo simples desfrutar da energia que ainda vai brotando dessa mesma vegetação, cada vez mais seca e  desfigurada.

Um gozo efémero para muitos deles, pois dentro de algum tempo serão obrigados a hibernar, como acontecerá com a maculada (Pararge  aegeria).




Mudando de meridiano, mudamos de bioma ... 

Nas terras quentes do interior, a quietude estival parece ainda mais gritante, apesar da grande biodiversidade existente.

Bandos de grifos (Gyps fulvus), pousados nas cornijas dos seus dormitórios observam em completo silêncio a vasta planície que os rodeia.



Chapins-azuis (Cyanistes caeruleus), no inferno das primeiras horas da tarde, enfrentam as altas temperaturas procurando as sombras e abrindo os bicos para termorregulação corporal.




O melro-azul (Monticola solitarius), esse senhor dos barrocais, sempre próximo de alguma reentrância da rocha, onde encontra sombra e abrigo, parece ter esquecido os seus sonoros chamamentos.




Até a cotovia-de-poupa (Galerida cristata), deixou de assobiar, como tão bem o fazia ainda há bem pouco tempo.




Mas, lá diz o ditado, não haver regra sem excepção. 

E no que toca a este adormecimento estival, a excepção pode muito bem passar pela chegada de uma horda desses vagabundos, que surgindo de quando em vez, e que embora não se demorando muito em cada local, não param um instante sequer de vocalizar. Exóticos na sua origem e no seu comportamento, são os atraentes bicos-de-lacre (Estrilda astrild).




Nestas terras secas e quentes, o Verão, é também o tempo da maturação silenciosa da fruta. Luzidia e doce de tanto açúcar, é uma tentação, uma sublime sobremesa, para uma diversidade de seres selvagens, que não precisam de cantar para a colher, como a ruidosa, agora quase silenciosa, pega-azul (Cyanopica cyanus).




À tardinha, tanto na cidade do litoral como na campina do interior, depois de um dia bem aquecido, agora ligeiramente refrescado por uma ligeira brisa a soprar morna, as correntes térmicas geradas elevam facilmente os seres mais leves e mantêm suspensos os mais pesados. 

É então, que lá bem do alto, se conseguem captar, os ténues chamamentos dos incansáveis andorinhões-pretos (Apus apus) perseguindo os densos bandos de insectos.





Insectos que parecem ser suficientes para ocupar uma boa parte da troposfera.

E é assim que, no bosque e nas proximidades da água, esta serenidade de fim de tarde é quebrada pelo som angustiante dos incontáveis batimentos das frágeis asas dos mosquitos (Culicidae), que já entraram em rodopio a esta hora do dia.





   

A tarde continua a cair, tal qual a manhã se foi erguendo. Serena. 

Apesar da luz ambiente ir diminuindo, o ar continua incendiado. Os sons não se fazem ouvir. A natureza já se dispôs adormecer.




Constata-se, que o Verão não combina, de todo, com grandes esforços, nomeadamente com os produzidos pelo aparelho fonador dos seres vivos. 

O Verão parece, antes, ser um período no calendário, em que a natureza de uma forma geral, aproveita para fazer uma pausa. 

Uma pausa para o silêncio.




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