quinta-feira, 13 de abril de 2023

Desertos verdes (IV)

 




(continuação)


Entre a vegetação arbustiva que adornava o pinhal destacava-se, à data, como muito abundante, a camarinheira (Corema album). 



Planta característica dos solos dunares apresentava-se no início da Primavera desprovida dos seus saborosos frutos, as camarinhas, que mais tarde ornamentariam a mata de múltiplos pontos brancos, ao mesmo tempo que serviriam de alimento a diferentes espécies animais.




A dominância deste tipo de vegetação arbustiva de médio porte permitia, ademais, a tão necessária camuflagem e abrigo para essa mesma fauna.


Era pois, por aqui, nas zonas mais interiores do pinhal, suficientemente afastadas do burburinho do povoado, que a vida silvestre, sobretudo ao nível dos mamíferos carnívoros, mais surpresas proporcionava.

Com o conhecimento dos seus hábitos e dos vestígios deixados pelos mesmos era possível, não raras vezes, encontros - sempre fascinantes - com esse grupo de seres.


O encontro com a astuta raposa (Vulpes vulpes) era quase sempre pré-anunciado, pelas marcas e odor característicos espalhados pelo seu território.



Sempre que acontecia, era uma delícia de avistamento ... apesar de extremamente fugaz!


Era também muito frequente encontrar despojos das caçadas protagonizadas pelas aves de rapina. Estas, predavam habitualmente sobre o pombo-torcaz (Columba palumbus), enquanto repousava nas ramagens.




A natureza arenosa do pinhal favorecia a formação de covas, que acabavam por se consolidar com as raízes e a própria vegetação herbácea do solo. 



Estas aberturas eram procuradas não só por raposas, mas também, por coelhos e mustelídeos, como entradas para as complexas galerias das suas tocas. 



Quando a tarde caía era hora de regressar. O pinhal começava a escurecer rapidamente. Os animais que se haviam avistados durante o dia já estavam recolhidos para o descanso nocturno.



Neste regresso ao lusco-fusco procurava-se aumentar os níveis de atenção sobre o estrato arbóreo, pois sabia-se que isso faria aumentar a probabilidade de novos avistamentos.

Apesar de completamente imóveis e com uma plumagem extraordinariamente camuflável, como de grossas ramagens se tratassem, podia-se com sorte descortinar aves de rapina nocturnas, como a emblemática coruja-do-mato (Strix aluco).



Esta mesma rapina nocturna, com os seus lancinantes gritos, haveria de afugentar das imediações do pinhalumas horas mais tarde, a maioria dos seres humanos que por lá ainda circulassem! Os seus gritos eram interpretados, à luz das crendices populares de então, como de mau agoiro e de almas penadas a vaguearem pela noite.


A relutância natural em abandonar o mundo místico da mata conduzia, muitas das vezes, a uma rápida escuridão no seu interior, apesar de no exterior da mesma ainda haver alguma luz ambiente. Uma grande vantagem, afinal, para quem lá andava.

No cimo do arvoredo não espreitavam apenas as aves da noite. Os mamíferos nocturnos também. E era fabuloso quando se conseguia vislumbrar a geneta (Genetta genetta)...



... encolhida sobre um grosso ramo, com sua pelagem estriada e olhar ensonado, despertando muito lentamente para as intensas caçadas que aconteceriam por entre as copas.


A vida registada durante o dia continuava durante a noite, com os mesmos ou com outros protagonistas.

À noite nada se conseguia observar, é certo. Mas ouvia-se. Ouviam-se ruídos vindos das árvores e dos arbustos. Ouviam-se pios e rastejos. 

Havia, sem dúvida, bastante vida. Biodiversidade.





Meio século se passou e esses extensos pinhais já não existem. 
Antes, eram eles que rodeavam os povoados. Hoje, são os povoados a esventrá-los, com desbastes sucessivos, para novas urbanizações, zonas industriais, áreas comerciais, ..., tal qual, como de uma praga anti-natureza se vivesse nos dias que correm.


Onde estão hoje, os sons da floresta de outrora, substituídos pelo actual silêncio que atordoa ao vaguear pela mesma?

E onde está a capacidade do pinhal em regenerar o ar, permitindo o desenvolvimento das comunidades de musgos, fungos e líquenes, tão importantes no equilíbrio do ecossistema? 

E o que resta dos nichos ecológicos que o pinhal possuía (como os que eram oferecidos pela camarinheira que, de abundante se tornou numa espécie ameaçada) e que permitiam a existência da fauna?  

E onde se encontram os predadores, como as raposas, as genetas e as rapinas? E as suas presas, como a rola-brava e o coelho-bravo? 

Onde está, afinal, essa biodiversidade de outrora?


Não está. Não estão. Simplesmente, já não existem.



Talvez, porque durante anos se assistiu ao massacre de algumas espécies, levando as mesmas a níveis populacionais tão baixos que afectariam negativamente as cadeias tróficas do pinhal.

Talvez, devido à falta de vontade em cuidar da floresta por parte dos organismos com essa competência, e que conduziu ao aparecimento de espécies invasoras, melhor adaptadas para a sobrevivência.

Talvez, devido ao barulho dos veículos todo-o-terreno, que passaram a rasgar a quietude natural deste ecossistema, retirando as condições necessárias para a fixação da fauna selvagem.


Talvez, ... direi antes, certamente!


O pinhal abastardou-se com diferentes espécies de acácias (Acacia sp.), que não precisam de muito para subtraírem o solo necessário a toda a restante flora autóctone...







... e com eucaliptos (Eucalyptus globulus), capazes de reduzir negativamente os aquíferos da mata, bem como, a natureza da manta morta que cobre o solo.





Os lixos, que no passado eram depositados na periferia do pinhal, até pelas evidentes dificuldades de transporte dos mesmos, passaram a ser transportados de forma fácil e depositados em diferentes pontos do seu interior, conspurcando globalmente todo o ecossistema. 






Os pinhais, que originalmente foram plantados para protegerem as produções agrícolas transformaram-se ao longo do tempo em motores de actividades industriais.

Primeiro, as agressivas monoculturas intensivas que alimentaram durante décadas (e continuam a alimentar) as unidades de produção de pasta de papel, com todo um mercado paralelo na compra e venda da madeira. 

Agora, a exploração do arvoredo para as unidades de biomassa. A nova moda. Bastante simples e rentável, também, como se pode constatar in loco.


Primeiro, cortam-se as espécies indesejadas juntamente com as outras que estão próximas (já que proceder a um corte mais selectivo tornar-se-ia mais moroso e por conseguinte mais dispendioso!) . 

Estas toneladas de lenha são carreadas por tractores através de trilhos e aceiros...




... até a um local, no próprio pinhal, onde as máquinas trituradoras transformarão troncos e ramagens em estilha, a qual cairá directamente nos camiões ...
 



... que cheios de matéria-prima seguirão até às centrais de produção de energia.


Uma verdadeira linha de produção industrial que se desenrola não numa fábrica mas antes em plena natureza. 

Os pinhais passaram a ser alvo de decibéis proibitivos. Semanas, meses de um barulho constante de destroçadores e trituradores, afastam os seres vivos da mata. Não há bicho que lá encontre condições para viver.

Por outro lado, e a pretexto da eliminação da flora invasora, destrói-se simultaneamente espécies autóctones, e facilita-se a erosão do solo do pinhal.





Uma verdadeira tragédia!

O pinhal continua verde, sim. Mas é um verde sem vida. 

Sem a biodiversidade que lhe foi própria no passado!





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