terça-feira, 4 de março de 2025

Inverno (III)

 



(continuação)


O calendário anuncia que o Inverno tem o fim próximo. Contudo, ninguém parece acreditar nessa assumpção. 

As sucessivas depressões ao arrastarem vento, chuva, gelo e frio estão a condicionar o ímpeto dos seres vivos em avançarem para a nova etapa reprodutiva.



Na verdade, sempre que os dias têm a oportunidade de acordar um pouco mais serenos, logo se deixam ouvir as cantorias produzidas pela passarada, das quais sobressaem os insistentes trinados do chamariz (Serinus serinus), clamando ardentemente pela Primavera. 




Mas a estes breves dias promissores de mudança sucedem-se aqueles outros, muitos aliás, que de tão sombrios produzem uma sensação de retrocesso na estação.



A laguna, a um quarto de légua da cidade e a um outro tanto do oceano, sombria por natureza durante o Inverno, experimenta nos dias menos agrestes laivos de alguma luminosidade coada por entre os estratos nebulosos. Nos outros, é de uma negritude ameaçadora.



A água cinza escura, que apenas é prateada pelo reflexo da pouca luz quando a ela consegue chegar, nunca se cala durante este período invernoso. 

O vento sul, ao soprar em fortes e contínuas rajadas, varre a superfície das águas empurrando-as para as margens ao mesmo tempo que produz uma tal sonoridade que é muito difícil ouvir-se a natureza em redor.



Contudo, não é por este ruído abafante, nem tão pouco pelas condições atmosféricas adversas, que os seres da laguna deixam de extravasar as suas rotinas. Bem pelo contrário. 


O perna-vermelha (Tringa totanus) que parecia andar desaparecido, afinal está bem presente. Esta bonita ave, com as patas e a base do bico vermelho-alaranjadas, mostra-se agora de forma mais insistente, pescando pequenos vermes durante a baixa-mar.




Junto de si outras pernaltas de maior estatura procuram também sustento. Em pequenos grupos, pousadas nos mouchões de lodoquase passam  despercebidas graças à tonalidade acastanhada da sua plumagem.



Os maçaricos-galegos (Numenius phaeopus), assim camuflados, acabam por assinalar a sua presença quando, assustados, levantam voo emitindo em simultâneo estridentes gritos de alarme. 



Colhereiros (Platalea leucorodia), em pequenos grupos, varrem as águas baixas agitando o bico para um e outro lado, pescando os pequenos peixes, crustáceos e moluscos que passam ao seu alcance. Em breve, alguns deles partirão para longe mas outros farão os seus ninhos nas proximidades.



Solitário na vastidão das águas lagunares, um exemplar juvenil de flamingo-comum (Phoenicopterus roseus) faz diariamente pela vida, para um dia poder apresentar a libré que tanto encanta quem observa estas aves.




Sobre a enrugadíssima toalha de água, nos locais onde a profundidade é maior, emergem algumas cabeças negras ornadas de imponentes bicos de base amarela.  Cabeças que permanecem muito pouco tempo fora de água, uma vez que os corvos-marinhos-de-faces-brancas (Phalacrocorax carbo) logo submergem em busca da pescaria que a corrente está a transportar.



Ao fim de alguns mergulhos as aves precisam de sair da água para secarem as penas encharcadas antes de voltarem para a pesca. Com as asas abertas em cruz, as penas secarão por efeito do vento que se faz sentir. É um momento sempre bonito para ser apreciado.





Depois de uma nova maré e quando a altura da água está de novo a descer, os lodos, antes encobertos, voltam a revelar-se. E neles volta a instalar-se uma comunidade de pequenas limícolas.


Com uma atraente plumagem padronizada e com umas patas alaranjadas, as rolas-do-mar (Arenaria interpres) entretêm-se a vasculhar por entre as fendas das rochas, por entre as algas e no interior do lodo, insectos, crustáceos, vermes e outros invertebrados que lhes servem de alimento.



Um pouco mais pequenos mas igualmente atraentes, os borrelhos-grandes-de-coleira (Charadrius hiaticula) observam-se de forma fácil. Enfrentando igualmente os rigores deste ecossistema tão dinâmico e agreste, vão acumulando a energia necessária para a sua eminente migração em direcção ao Árctico onde irão nidificar.



Entre as várias outras espécies de limícolas que ocupam esta zona lagunar conta-se o maçarico-das-rochas (Actitis hypoleucos). Omnipresente em zonas húmidas ao longo do ano, calcorreia os sedimentos lodosos da laguna estacando frequentemente, para, com vénias e abanos da sua porção traseira, não deixar dúvidas sobre a sua identificação.



Antes da maré voltar a encher e as praias de vasa desaparecerem procuramos a solitária e vigilante tarambola-cinzenta (Pluvialis squatarola). Muito em breve partirá na sua longa viagem até à tundra árctica onde irá fazer criação. Para já, continua a gozar de alimentação abundante pois estes lodos são uma fonte de anelídeos, moluscos e crustáceos de que ela tanto precisa.




(continua)


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