segunda-feira, 16 de maio de 2022

Primavera na serra (IV)

 






(continuação)


A manhã acordou bem cedo, por culpa dos habituais cantores primaveris. 

De muito longe, chega o canto dissilábico e abafado do cuco-canoro, numa saudação matinal que parece dar continuidade à despedida vespertina de ontem.

Partimos para a serra, com o Sol muito baixo. Traçámos planos de véspera e por isso avançamos hoje com alguma expectativa. 

Com estes pensamentos na mente somos, mais uma vez, solicitados pela natureza envolvente. Um novo trinado faz-nos dirigir a cabeça para cima. Pousado num cabo eléctrico que alimenta a aldeia, um macho canta repetidamente, parecendo indiferente à nossa aproximação. Trata-se de um papa-amoras (Sylvia communis) que nos saúda à passagem.



Seguimos o caminho que sai da aldeia para a serra, ladeado por pequenas parcelas agricultáveis. Numa dessas leiras, um coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) encontra-se a pastar, desaparecendo a correr, mal se apercebe da nossa presença.







O nosso destino para hoje passa por explorar as encostas serranas, que se vêm ao longe no horizonte e observar a vida selvagem neste novo andar da montanha, a uma maior altitude.



A luz matinal, bastante suave, começa a dar cor ao monte. O amarelo vivo é sem dúvida o tom dominante durante esta altura do ano. De um e do outro lado do trilho que agora levamos, as flores são exemplo disso.



A manhã avança com o Sol a erguer-se rápido. No cimo de uma barroca, um sardão (Lacerta lepida), imóvel, procede à regulação da sua temperatura corporal, uma das actividades mais importantes do seu dia-a-dia. Dispensámos algum tempo a observar os comportamentos deste belo animal.



Uma ou outra conífera vai surgindo no terreno declivoso que seguimos, encosta acima. São resquícios de um antigo bosque, desaparecido pela acção devastadora dos incêndios. É nestes redutos arborícolas que a pequena e tímida ferreirinha-comum (Prunella modularis) se deixa primeiro ouvir e posteriormente avistar. 



Estamos a meio do dia. A manhã acabou por se tornar muito quente, tal qual a de ontem. Prosseguimos, depois de termos aproveitado, tal como o pequeno pássaro, para fazer uma pausa retemperadora.



A serra, é feita de rochas e pastos. Embora árida, num primeiro registo, depressa nos apercebemos que assim não o é. 

Proveniente dos cumes, a água que irrompe algures do subsolo, vai escorrendo pela encosta, seguindo diversas e estreitas vias. Quando estas linhas de água se encontram, o caudal aumenta, reforçando o  poder erosivo da mesma. 

Ao cair aos trambolhões por entre as rochas... 



... promove a sua própria oxigenação e a pureza do riacho que entretanto se formou. Água límpida, em que o leito se vê como se estivesse coberto por um vidro transparente.




O riacho de montanha é, pois, um ecossistema soberbo, onde a vegetação e os animais aquáticos vivem sem o desconforto da poluição!



As suas águas cristalinas reúnem nesta altura do ano um grande número de larvas de insectos variados, bem como, ovos de anfíbios. É um verdadeiro manancial nas cadeias tróficas deste ecossistema!

Esta grande quantidade de biomassa aquática fica disponível para ser aproveitada por diversos predadores. 

É por estas razões que o riacho está coberto, nesta altura do ano, por uma mancha de alfaiates (Gerris lacustris), também predadores de outros insectos.



             

As aves insectívoras, como a pequena e irrequieta carriça (Troglodytes troglodytes), que se nos oferece agora apreciar, com a cauda costumeiramente erguida, exploram o habitat arbustivo que cresce junto ao riacho, capturando muitos dos insectos que aqui proliferam.




Também alguns répteis procuram estes terrenos húmidos, pois aqui encontram disponibilidade de insectos e aracnídeos. 

Pudemos comprovar isso mesmo, primeiro, com o aparecimento de um macho de licranço (Anguis fragilis), de aparência serpentiforme, sem efectivamente o ser...




... e pouco tempo depois, de um vistoso casal de lagarto-d'água (Lacerta schreiberi), em que é possível constatar o grande dimorfismo sexual existente.


Fêmeas bem maiores que os machos e machos, em reprodução, com a totalidade da cabeça de tom azul.


Ultrapassado o riacho, que tanta magia nos ofereceu, continuamos a seguir em ascensão. 


A meio da tarde, um movimento intenso de corvídeos sobre o cocuruto de uma fraga, algumas centenas de metros à nossa frente, fez-nos mudar de direcção. Pressentimos que algo lá estaria a acontecer. 


Vencida a distância confirmou-se o pressentimento. Uma ovelha morta recentemente, uma fêmea prenha, era o motivo da azáfama dos corvos.




A escassos metros do local onde se encontrava o cadáver, um casal de corvos pousados sobre a rocha aguardavam a chegada de aliados, sem os quais dificilmente poderiam tirar partido de tanta fartura. 



Olhámos para cima e vimos o que era suposto ver. Os grifos (Gyps fulvus), atraídos pela movimentação dos corvos, tinham chegado ao local, embora ainda voassem alto em círculos. 




Não ficámos para confirmar se ainda hoje tombariam sobre o cadáver, dado o adiantado da hora. Talvez só amanhã. 

Para nós tinha chegado a hora do regresso. 

Ao caminhar encosta abaixo, no sentido inverso ao que havia tomado durante todo o dia, olhei o vale, que me estava a mostrar que, tal como os dois sentidos fazem parte do mesmo caminho, morte e vida são indissociáveis da existência dos seres. Tudo bem feito.

A vida continuava a fervilhar na Primavera da serra.



(continua)

2 comentários:

Mixan disse...

Gostei muito. Do texto, das fotos e do muito que aprendi. Obrigada.

Álvaro Reis disse...

Fico feliz por isso. Obrigado eu.