quarta-feira, 1 de junho de 2022

Primavera na serra (V)





(continuação)


Uma semana depois, estou de regresso à serra. 

Desta vez, para uma expedição que irá exigir maior esforço. Não tanto em termos físicos, mas sobretudo, do ponto de vista metodológico. Durante esta última semana procurei, pois, definir cuidadosamente todos os passos que irão agora ser postos à prova. 


Entretanto, a vida pela serra continua vibrante. 



Também as condições meteorológicas mudaram e para melhor, com a temperatura a descer uns cinco graus na escala e as nuvens presentes a filtrarem a luz dura do Sol.


As lavercas (Alauda arvensis), já nossas conhecidas, continuam a marcar presença, destacadas na penedia.



Também a cia (Emberiza cia), com o seu padrão listado na cabeça, encontra nestas encostas de urze e carqueja o seu habitat de eleição, não passando despercebida quando pousada sobre uma rocha.




Da ovelha morta, que na semana anterior havia encontrado no cimo da serra, restam parcos vestígios, que o vento acabará por sumir de vez.




Olho em frente e vejo encostas cada vez mais declivosas. É para lá que me dirijo.



À medida que subo, avisto ao longe sobre uma barroca, uma silhueta inconfundível, que os binóculos ajudam a confirmar detalhes. Trata-se do melro-azul (Monticola solitarius), criatura alada dependente deste tipo de habitat.



Completamente imóvel e pousada sobre a encosta, está uma águia-d'asa-redonda (Buteo buteo). Apenas a sua cabeça gira, observando demoradamente a encosta e o vale, na tentativa de descobrir uma qualquer presa que lhe seja apetecível.



Até aqui, a caminhada foi bastante compassada, pois os encantos da serrania arrebatam e distraem. Sinto, contudo, que deveria ter sido mais lesto.  Por esta razão, acelero o passo, procuro ignorar a passarada, cujos cantos me desafiam e percorro, livre pela montanha, cerca de dois a três quilómetros até ao destino.


Ao chegar ao local predestinado, preparo a estadia, que iria ser longa. Camuflado pela própria serra, ali permaneci. Na verdade, o meu dia só agora ia começar.


Naquele posto, o silêncio era total. O ar ameno e o olhar a perder de vista  transpareciam serenidade. Apenas um rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros), surgido inesperadamente, criou algum dinamismo ao quadro.




Não terá passado uma meia hora até que a primeira e grande surpresa do dia acontecesse. E que surpresa! 

Uma marta (Martes martes) surge inopinadamente de uma cavidade rochosa. Após examinar, curiosa, o ambiente em redor, volta a entrar na toca pouco depois. Parecia ter acordado subitamente do seu sono que, pouco depois quis retomar.



Fantástica visão! Em pleno dia acabei de ter o privilégio de observar um mamífero carnívoro que, habitualmente, só sai da toca à noite.


Animado por este encontro entrei de novo em "modo de espera". O local escolhido parecia estar a corresponder ao esperado, já que o objectivo desta expedição passava, sobretudo, pela tentativa de observação  de mamíferos.


Enquanto esperava, não sabendo exactamente pelo quê, ia observando a agitação que, entretanto fora desencadeada numa parede rochosa à minha frente. Um enorme bando de juvenis de andorinha-dos-beirais (Delichon urbica) havia surgido de algum local distante e agora as aves revoavam sobre a rocha. 




Após volteios e mais volteios, algumas delas acabavam por pousar, para capturarem algum insecto alojado nos líquenes que recobrem a pedra, antes de levantarem voo, dando lugar a outras companheiras. 




Entretido com este bailado aéreo, nem dei conta da rapidez com que o tempo passou.

Volvidos um par de horas, uma intensa agitação no mato deixou-me imediatamente em sobressalto. Tive, contudo, de aguardar ainda uns minutos, uma vez que, embora a vegetação se mexesse, a causa de tal movimento não se descortinava.

Finalmente, o enigma ficou quebrado. Um javali (Sus scrofa) assume-se perante os meus olhos. Lindo animal. Fuçava, sem parar, comendo as ervas e as raízes que bem lhe agradavam.



Demorou-se o javardo ainda um bom bocado a pastar, enquanto eu me deliciava a vê-lo. Subitamente deu um galope e desapareceu no mato.


Voltei a ficar unicamente com a paisagem como companhia. Uma cotovia-montesina (Galerida theklae) deixa-se ouvir e ver no cimo de uma barroca.



Quando a deixei de ouvir, ao fim de alguns minutos de cantoria, olhei na sua direcção, mas já lá não estava.

Voltei a ficar, de novo, com o silêncio de uma fabulosa paisagem selvagem, onde soava às vezes a passagem de um vento fraco.

O tempo ia-se gastando e eu, estranhamente, continuava a sentir uma sensação de ausência, apesar das companhias que já tinham dado de si. 

Na parede rochosa, onde horas antes as andorinhas se banqueteavam, chega um pardal-francês (Petronia petronia), também com igual intenção.



Do meu pouso tinha uma visão desimpedida de uns 270 graus, sobre encostas bravias com algumas clareiras por entre os matos que as cobriam.

Enquanto perscrutava esta envolvência imaginava poder descortinar, a qualquer momento, algum corço a irromper do mato ou algumas perdizes a passarem por mim com estrépito. Mas nada. Não havia sinais de corço ou de perdizes, apenas, bem alto, passava um bútio-vespeiro (Pernis apivorus), também ele à espera de ver algo cá em baixo. 




Entrementes, vigiava a altura do Sol e de cada vez que o fazia sentia que o momento do regresso estava cada vez mais perto. 


Tinha sido um óptimo dia, brindado com registos fantásticos, mas a vontade de abandonar este lugar tão belo, não era nenhuma. E por isso decidi ficar um pouco mais.

Transcorrida cerca de meia hora, eis que, uma nova mirada ao astro-rei me impeliu definitivamente a levantar do lugar. Precisamente nesse momento, quando os músculos do corpo ainda nem sequer haviam sido mobilizados pela decisão, tive a visão superlativa!


Numa das clareiras abertas por entre o mato, vi aquilo que frequentemente me acode à mente quando vou para a serra, mas que logo deixo declinar, pela baixa probabilidade de acontecer. A visão de um lobo no seu habitat natural. 

Um dos poucos exemplares de lobo-ibérico (Canis lupus signatus) existentes em Portugal caminhava sozinho, devagar, como que saboreando o fim de tarde. Boquiaberto, mas consciente de que o momento iria ser efémero, apressei-me a registá-lo. 



Num misto de felicidade e nervosismo, nem sabia muito bem o que deveria fazer para prolongar este momento mágico

Quando o lobo desapareceu, parecia que nada mais me importava ali; antes pelo contrário, parecia-me que, quanto mais depressa regressasse a casa, mais intensamente assentaria este registo no meu subconsciente. 

Afinal, tinha acabado de estar a cerca de uma centena de metros de um dos proscritos mais perseguidos em Portugal. 


Talvez, tenha sido bafejado pela sorte ou merecido ser abençoado. Contudo, duas semanas antes, muito próximo deste local, tinha encontrado a pista que me trouxe hoje até aqui. Excrementos de lobo.




Voltei para casa numa enorme felicidade! 



2 comentários:

Mixan disse...

Maravilhoso, adorei!

Álvaro Reis disse...

Fico feliz por vivenciar também da minha alegria pela natureza!