quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Polis Litoral Ria de Aveiro - um instrumento de requalificação ou de delapidação?


Em Maio de 2010 foi lançado o Concurso Público, no âmbito da Intervenção da Polis Litoral Ria de Aveiro, para Concepção do “Projecto de Reordenamento e Qualificação da Frente Lagunar de Ovar: Cais da Ribeira, Foz do Rio Cáster e Praia do Areínho”.
Terminado o período de concepção de propostas e após a divulgação dos resultados da selecção dos concorrentes apanha-se o ‘grande choque´: a entidade que acabava de ganhar o concurso apresentava um projecto cheio de fragilidades, que passavam, entre outros, pelo desconhecimento da região, pela incapacidade demonstrada na avaliação dos recursos da zona e pelo menosprezo dos impactes ambientais decorrentes da concretização desse mesmo projecto.
Passemos então a analisar algumas das acções que os projectos deviam contemplar em cada uma das três zonas bem como as propostas saídas do projecto vencedor.


Praia do Areínho
No que respeita a esta praia era solicitada pela Polis, entre outras a: a) valorização das zonas verdes através da sua utilização como espaços de lazer (parques de merendas, campos de jogos); b) criação de percursos a interligar os espaços; c) construção de um cais de acostagem para pequenas embarcações de recreio. Tudo isto se pedia, sem perturbação das espécies e habitats naturais existentes no local.
Acontece que, para uma valorização real desta praia é absolutamente essencial aumentar a extensão e volumetria do areal da mesma. 



Sem o cumprimento deste pressuposto é difícil imaginar o sucesso de qualquer um daqueles objectivos. Ora, por um lado, o projecto seleccionado não contempla a reposição das areias e por outro lado, para a sociedade Polis, este tipo de reforço arenoso sai fora do orçamento do projecto. Cabe então perguntar. Que coerência de intervenção existe neste Polis da Ria? Mais, para a Polis é perfeitamente admissível que os percursos a delimitar na praia possam ficar submersos! Mas que disparate é este que obrigaria os passeantes a terem que se deslocar dentro de água ou então a esperarem pela descida da maré?



Cais da Ribeira
No que respeita à requalificação e valorização deste cais, a Polis Ria de Aveiro advogava, entre outras, a reabilitação das margens do cais e do acesso pelas embarcações.
Na verdade, a função principal de um cais é permitir a chegada e partida de embarcações, pela água. Facto, que no tempo actual e na Ribeira de Ovar é praticamente impossível sempre que o nível das águas começa a baixar. A grande amplitude das marés e o estado de elevado assoreamento do cais da Ribeira impossibilita a navegabilidade.
Assim sendo e como medida primária seria lógico esperar que, antes de qualquer outra acção de cosmética a realizar no cais, se começasse por resolver o principal problema do mesmo, ou seja proceder à sua dragagem bem como do canal de acesso ao mesmo. Mas nem o projecto vencedor contempla esta intervenção, nem tão pouco a Polis a engloba nas suas acções, «por ultrapassarem o âmbito deste programa e as suas disponibilidades financeiras». Mais uma vez se revela pertinente perguntar, que programa é este Polis e afinal que vantagens efectivas quer trazer à Ria de Aveiro?


Foz do Rio Cáster
Relativamente a esta zona húmida ovarense a Polis apontava, entre outras, as seguintes intervenções de requalificação: a) criação de um percurso ciclável ao longo do rio; b) limpeza das margens e requalificação da vegetação ao longo do caminho existente, com eventual erradicação de espécies infestantes e com a substituição destas últimas por espécies autóctones.
Desde logo a leitura dos Termos de Referência do concurso deixava antever o grande e perigoso desconhecimento por parte da equipa do Polis sobre a real distribuição dos recursos naturais do concelho de Ovar. Isto, porque fazia uma referência muito preocupada relativamente aos recursos muito sensíveis (quais?) existentes na praia do Areínho enquanto pelo contrário não demonstrava qualquer preocupação por aquela que efectivamente merece tais preocupações ambientais - a Foz do Cáster e áreas envolventes! Vejamos então.
O projecto vencedor, ao contrário de outro(s), não apresenta quaisquer medidas de intervenção no sentido de realizar o controlo de espécies arbóreas/arbustivas infestantes nem tão pouco a sua substituição por espécies autóctones. Mas ganhou!
Para uma zona de tão elevada sensibilidade, como a zona da Foz do Cáster, com espécies da avifauna muito vulneráveis, o projecto vencedor propõe não só levar a ciclovia mesmo até à Foz do rio (com todo o barulho e fortes perturbações daí decorrentes), como criar um parque de estacionamento na foz! Deve ser uma ideia linda e oportuna, para eles, mas seguramente destruidora para a natureza! E a Polis «abençoa» tal ideia dizendo que as aves não se encontram por lá e que o habitat presente (caniçal) até nem é importante! Confesso nunca ter ouvido tanto disparate junto.



Mais ainda. O projecto vencedor propõe, como forma de observar aves, levantar uma torre a meio do percurso. Uma torre naquele lugar? Para observar aves? Isto é uma ideia de loucos e de quem nunca experimentou tal ofício. Numa zona como aquela, para observar aves basta um par de binóculos, discrição e pouco mais! A implantar-se um posto de observação naquele local, este deveria ser de reduzida envergadura, posicionado lateralmente ao caminho e completamente enquadrado na cortina arbórea. Uma estrutura destacada, como uma torre, implantada naquela zona, além de constituir um elemento poluidor da paisagem constituirá mais um factor de grave perturbação para o meio envolvente.
Este projecto Polis Ria de Aveiro (pelo menos para o concelho de Ovar) mostra-se de uma tal aberrância que é forçoso lembrar algumas ideias: 1) as muitas asneiradas ambientais produzidas pelo país fora não o foram por cidadãos individuais, nem tão pouco por associações não governamentais; são sempre efectuadas por instituições governamentais ou por equipas por elas indigitadas, teoricamente idóneas, bem assessoradas tecnicamente e cheias de «profissionalismo». 2) as muitas asneiradas ambientais produzidas pelo país têm demonstrado que, da teoria à prática, vai frequentemente uma distância enorme, de uma dimensão proporcional à presunção dos decisores, frequentemente ricos de puro amadorismo nas abordagens realizadas; 3) Os recursos naturais de Ovar merecem ser cuidados e não desbaratados! Quando se desconhecem as matérias sobre as quais se tem que intervir ou quando não se conhece as realidades de um dado local, estude-se primeiro, antes de se opinar com uma mão cheia de bitaites.

(este artigo foi publicado no jornal "João Semana", de 01/11/10)



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