quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O Covid-19 e as aves da nossa cidade: tempo de passagens

Outono!

Este ano a estação está ensombrada pelo início de uma segunda vaga pandémica, que se estima ser bem mais grave que a primeira. Os números da DGS não enganam e continuam a colocar o município ovarense numa situação nada tranquilizadora, com cerca de 750 infectados ao quinto dia do mês de Outubro.








À margem deste clima de ansiedade para os humanos, o amanhecer nos parques e jardins da cidade de Ovar é nesta altura do ano feito de uma grande quietude. Os primeiros raios de Sol ainda não conseguem chegar a todos os cantos do arvoredo, nem tão pouco esconder o frio matinal que mantém muitos dos seres vivos ainda recatados nos seus dormitórios.



Entre os mais activos a esta hora da manhã, destacam-se as espécies mais comuns e também mais adaptadas ao homem, como os pombos-domésticos (Columba livia, raça doméstica), as rolas-turcas (Streptopelia decaoto), os melros-pretos (Turdus merula) e as pegas-rabudas (Pica pica), que esvoaçam de árvore em árvore como que em matinais exercícios de aquecimento.

Contudo, entre estes surge um personagem novo, o gaio (Garrulus glandarius). Apesar de ser uma espécie residente na região só agora é visto, regularmente, a voar, com seu voo poderoso e directo, entre as grandes manchas arbóreas da cidade, pois durante a época de criação preferiu, pela sua grande esquivez, o maior recolhimento das matas. 




Com o final do Verão começaram a regressar ao sul várias espécies de aves que tinham chegado até nós no início da Primavera, algumas das quais foram alvo de artigos anteriores. Pelo facto de não encontrarem nas nossas paragens as condições ambientais adequadas para aqui passarem o Inverno, são chamadas de espécies estivais.

Como que a preencher o vazio deixado por estas, começaram a surgir a partir dos finais de Agosto, vindas de maiores latitudes, novas espécies que, fugindo aos rigores do clima, por aqui ficarão até à Primavera do próximo ano. Logo que as condições climáticas melhorarem nos territórios do norte, aí regressarão, para fazerem criação. Chamam-se a estas, espécies invernantes.

Quer um quer outro grupo fazem parte das chamadas espécies migradoras. Um terceiro grupo de espécies migrantes são aquelas que atravessam as nossas latitudes, pousando aqui e além para recuperarem energias, mas em que o seu destino final ainda está longe. São as denominadas migradoras de passagem.

Por último, temos aquelas espécies que, tendo como área normal de distribuição territórios bem distantes do nosso, por aqui surgem de quando em vez. São as chamadas espécies acidentais.

Todas estes grupos de espécies migradoras, aquando da sua estadia entre nós, convivem com as outras que aqui permanecem durante todo o ano e que por isso constituem o grupo das espécies residentes. 


Mas voltemos às aves da nossa cidade recuando um pouco no calendário ....

Em meados de Agosto os ninhos de cegonha-branca (Ciconia ciconia) encontram-se definitivamente vazios. As aves, incluindo os juvenis, já não os usam, pois encontrando-se dispersas durante o dia pelos campos próximos aí encontram  locais favoráveis para o descanso nocturno. Em breve estas aves juntar-se-ão a outras e outras mais, em territórios  cada vez mais afastados de Ovar iniciando assim o progressivo movimento de romagem a sul.


Quem por esta data também já deixou de ser visto nas suas deambulações citadinas atrás dos pombos domésticos foi o milhafre-preto (Milvus migrans). Esta ave é das primeiras a abandonar os locais de criação e a empreender o regresso a África, tal qual, a águia-calçada (Hieraaetus pennatus), outra protagonista regular dos céus vareiros durante o estio. 


 


Também por esta altura as andorinhas-das-chaminés (Hirundo rustica) deixaram de ser vistas a voar sobre o parque urbano da cidade. Poder-se-ia pensar que teriam partido já para África...mas não. À semelhança de todas as outras espécies migradoras, elas passam sempre um largo período de tempo, antes da migração, em zonas ricas em alimento, neste caso, prados húmidos onde os insectos são abundantes. Este período de tempo é fundamental para adquirirem o suporte energético que lhes permitirá realizar essa longa epopeia transcontinental.



A sua parente, a andorinha-dos-beirais (Delichon urbica), não é tão apressada...a cidade continua a proporcionar-lhe alimento e nos primeiros dias de Outubro ainda a pudemos ver e ouvir (embora em número reduzido) cruzando o ar com seus chilreios, conjuntamente com a residente andorinha-das-rochas (Ptyonoprogne rupestris). 

Foi interessante registar o comportamento reprodutor tardio da andorinha-dos-beirais, no que respeitou aos dois ninhos que foram seguidos durante toda a Primavera e Verão e que aqui se relatou em apontamentos anteriores. É que em finais de Setembro os referidos casais continuavam a voar regularmente para os ninhos, embora com menor intensidade, tendo inclusivamente num dos casos havido a preocupação por parte do casal em recompor as paredes destruídas durante o pico da nidificação.







O mês de Setembro na cidade, além de assistir à preparação e início das viagens de várias espécies de aves para sul, assiste também à chegada crescente dos migradores vindos de latitudes setentrionais que, começando a sentir os primeiros frios, procuram temperaturas mais amenas nas nossas latitudes.

Para além da temperatura, estas aves são influenciadas por um outro factor físico decisivo no despoletar do seu instinto migratório - o fotoperíodo, isto é, a duração diária das horas de luz. Com o final do Verão no hemisfério norte a duração do período de luz começa a diminuir substancialmente obrigando algumas espécies a deslocarem-se para áreas mais meridionais onde encontram condições favoráveis à manutenção dos seus ritmos biológicos.

As migrações das aves são, de facto, um acontecimento que nos faz reflectir, mais uma vez, sobre a complexidade e funcionalidade das relações entre os seres e o meio ambiente, e que fazem da Terra o tal planeta único na vastidão do Universo! 



As aves migradoras à medida que vão chegando a Portugal vão ocupando diferentes habitats, que lhes oferecem as condições de abrigo e de alimento necessárias. Entre estas registemos algumas das primeiras migrantes outonais que começaram a frequentar os parques da cidade. 


Um dos primeiros a chegar, começa a ser visto desde Setembro, um pouco por todo o lado onde existam arvoredos. Trata-se do papa-moscas-preto (Ficedula hypoleuca). 




Já sem a sua vistosa plumagem nupcial, preta e branca, agora substituída por padrões branco sujo e castanho, mantém contudo a mancha branca nas asas. Se o observarmos com alguma demora constataremos a sua actividade irrequieta voando de um ramo para outro próximo, para pouco depois regressar ao inicial. E repete esta dança enquanto não se sentir obrigado a esvoaçar para longe. É mais uma espécie insectívora que vem muito cedo ocupar os nichos deixados livres por outras que já estão de abalada para sul.

Um migrador de passagem para África, observado frequentemente durante este mês, é a felosa-musical (Phylloscopus trochilus), muito semelhante à sua parente felosa-comum (Phylloscopus collybita), residente mas pouco frequente durante o estio. As felosas são pequenas aves, de cor cinzenta esverdeada, que procuram insistentemente insectos entre a folhagem das ramagens.



Estamos no início de Outubro e o andorinhão-preto (Apus apus) ainda anda por cá. Por vezes esta ave deixa de se avistar por uns dias mas logo reaparece, como já foi referido em apontamento anterior; as condições climatéricas são as grandes responsáveis por estas ausências, durante as quais a espécie empreende migrações internas em busca das grandes nuvens de insectos, também eles condicionados pelas deslocações constantes das massas de ar. Muito em breve andorinhão-preto empreenderá a sua migração para África.



Constata-se, assim, que a vida de cada um destes seres citadinos está condicionada não só pela do seu vizinho específico mas também pela vida das demais espécies que com ele interagem. Por outro lado, toda esta massa vivente não está encerrada em si mesma, antes depende também, dos elementos físicos ambientais. E estes, por sua vez, recebem influxos da biomassa fechando o ciclo.

Enfim, ocorrem na cidade os mesmos ciclos que em qualquer outro ecossistema natural ou semi-natural; daí a importância destes espaços citadinos para a biodiversidade em geral!



É esta teia complexa de relações, presentes em todos os biomas, que faz do planeta Terra um sistema biofísico muito complexo e extraordinariamente belo, sem dúvida!


Por estes dias de Outono, à medida que o Sol se vai elevando no horizonte e as copas das maiores árvores começam a ficar bastante iluminadas, os cantos das aves fazem-se ouvir melhor e no solo uma das residentes dos parques e jardins, a alvéola-branca (Motacilla alba alba) persegue incansável os preciosos insectos, base da sua dieta. 



A meio da tarde várias espécies de aves banham-se nas águas do rio Cáster; entre elas a alvéola-cinzenta (Motacilla cinerea), que por aqui esteve ausente durante o estio. 


Esta espécie embora residente na região vê a sua área de distribuição alargada durante o Outono com as aves migrantes vindas do norte; por essa razão passa a ser normal poder observá-la nas proximidades dos cursos de água do parque urbano.

O ritmo das estações marca a variabilidade do comportamento animal, mesmo para as espécies que não são migradoras. Por isso, é interessante referir a alteração do comportamento e da área de distribuição de duas espécies de passeriformes residentes e comuns na região. 

Uma delas conhecemos bem, o chamariz (Serinus serinus)...

Durante a época de criação os machos desta espécie, diariamente e do alto de pontos elevados, assinalavam os seus territórios cantando quase ininterruptamente. O casal constituía o núcleo familiar que seria em breve alargado com o nascimento das crias. Com a independência dos juvenis o núcleo familiar desfaz-se e as aves passam a viver em bandos que se dispersam consoante a disponibilidade alimentar do meio.

É assim que sob a luz dourada do entardecer podemos observar no parque urbano bandos ruidosos desta espécie, esvoaçando de árvore em árvore, camuflados entre a folhagem amarelada dos choupos e dos amieiros ou procurando alimento, de forma irrequieta, no solo. Ao menor distúrbio levantam voo de imediato ao mesmo tempo que vão lançando gritos de alarme.






Outra espécie, que não frequentava os parques da cidade durante a época de criação, porque preferia habitats mais selvagens, como extensos terrenos húmidos, é agora observada facilmente no parque urbano da cidade. Trata-se do cartaxo-comum (Saxicola torquata). 



A migração outonal vai sensivelmente a meio ... mais algumas espécies de aves haverão de chegar aos nossos parques e jardins durante este período ... e também para passarem por aqui o Inverno.

Os dias vão decorrendo soalheiros e sem grandes frios até à data ... as folhas das árvores continuam lentamente a acobrear lembrando que a natureza entrou decididamente no Outono, essa estação fabulosa em que as manchas arbóreas formarão belíssimos quadros multicoloridos até à chegada dos rigores do Inverno!




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