sábado, 9 de janeiro de 2021

Um dia de Inverno na floresta (I)

 A manhã vai acordando... 

Enquanto o Sol parece ganhar força para se elevar no firmamento, nós estamos preparadíssimos para mais um dia na natureza. Procuramos, hoje, fruir dos encantos florestais.

Penetrar no interior da floresta, encharcada pelas chuvas caídas nos últimos dias, constituirá, por certo, uma experiência singular, na medida em que, nos iremos imiscuir num mundo pleno de magia, de tons e de cheiros.  




A obscuridade em que, de repente, nos vemos envolvidos, o odor intenso a madeira húmida penetrando profusamente as narinas e o verde, carregado e luzidio, a que os olhos não podem fugir, transmitem uma paz e um ambiente de enorme misticismo, que nos impele a avançar.



E avançamos, ávidos desta natureza que nos parece desafiar.


Avançamos por um trilho, já desenhado, atapetado de inúmeras folhas, quer das típicas agulhas, que mais não são do que folhas acerosas do predominante Pinheiro-bravo (Pinus pinaster), quer das outras que caíram de um Carvalho-alvarinho (Quercus robur) nascido no local.

  


A depressão climatérica que ocorreu há dias gerou ventos fortes e estes dificilmente poupam aquilo que não é suficientemente resistente. 

As árvores, pelo seu elevado porte e quando de avançada idade, são das estruturas que mais facilmente tombam na natureza. Por isso, à medida que avançamos, vamos encontrando, prostrados no solo, mil e um pedaços de madeira, a que a humidade entranhada se encarrega de conferir um brilho negro e intenso, que contrasta com o tapete verde, de líquenes, que cobre o solo arenoso. 



Os líquenes são uma presença regular, ao longo do ano, nos troncos e ramagens do arvoredo, caso a atmosfera local não contenha níveis elevados de poluentes. Assumem-se, deste modo, como bioindicadores da qualidade do ar. 

Podem apresentar uma grande diversidade de formas, cores e  graus de sensibilidade à poluição. 

Os primeiros líquenes a serem observados nas árvores apresentam uma tonalidade verde acinzentada, caindo dos troncos, como longas barbas! Tratam-se de exemplares do género Usnea, e são líquenes muito sensíveis à poluição.  



A sua presença neste espaço significa, pois, que o ar está isento de poluição!


Os líquenes podem ocorrer associados a outros géneros, no mesmo substrato, como no caso da comunidade de Usnea e Flavoparmelia.



Os líquenes do género Parmotrema apresentam forma enrugada, são de cor verde-amarelada e implantam-se sobre os troncos e ramos das árvores. Apresentam uma sensibilidade intermédia à poluição.


Estes maravilhosos organismos, além de constituírem uma prodigiosa simbiose entre uma alga (planta com clorofila e por isso produtora de compostos orgânicos) e um fungo (planta sem clorofila, e que vai absorver os compostos produzidos pela alga fornecendo-lhe em troca, água, sais minerais e um suporte estável de vida), acabam sem dúvida, por conferir pinceladas de cor ao negrume do arvoredo.

Fazendo parte integrante da floresta também eles jazem, incrustados nos troncos que tombam no solo.



Não precisamos de gastar muitos passos para nos certificarmos de que o povoamento florestal é dominado pelo Pinheiro-bravo. 

Contudo, iremos constatar existirem áreas em que o pinhal ganha uma vida nova, muito mais intensa, em que se ouvem e enxergam diferentes passeriformes voando de ramo em ramo ... precisamente porque ao pinhal lhe foi quebrada a monotonia arbórea. 

De facto, há zonas em que surgem, aqui e ali, um ou outro exemplar de Amieiro (Alnus glutinosa), de Choupo-negro (Populus nigra), de Samouco (Myrica faya), de Salgueiro-preto (Salix atrocinerea), de Medronheiro (Arbutus unedo) ou de Carvalho-alvarinho ... assim como,  pequenos núcleos de Pinheiro-manso (Pinus pinea). 

Estas diferentes famílias arbóreas presentes na floresta, associadas à vegetação arbustiva, conferem uma heterogeneidade visual muito agradável à vista, mas sobretudo, são de enorme importância para a biodiversidade do ecossistema.




Não admira pois, que nestas áreas da floresta se façam ouvir bastantes cantos de passeriformes, tais como o do Chapim-carvoeiro (Periparus ater) ou o do Verdilhão (Chloris chloris). Hoje, juntamente com  os chapins-carvoeiros observam-se vários indivíduos de chapim-rabilongo (Aegithalos caudatus). 

Procurámo-los por entre as altas copas e lá andam eles ... a rapidez com que saltam de ramo em ramo e a necessidade de encontrarem alimento, neste período difícil do ano, deixam-nos por vezes em posições muito acrobáticas. 


   

À medida que avançamos, seguindo o serpenteante trilho, sucedem-se novos motivos que prendem a nossa atenção. 

Um deles tem a ver com um grupo de bonitos cogumelos, o Bolete-bovino (Suillus bovinus), que irrompem no solo junto ao caminho. 



Os cogumelos fazem parte da classe dos Fungos, plantas que, como antes referimos, são desprovidas de clorofila e portanto incapazes de sintetizarem o seu próprio alimento. Para sobreviverem precisam de absorver compostos orgânicos através do seu ramificado micélio.

Os fungos são plantas muito importantes no ecossistema florestal, dado que desempenham a função de decompositores da matéria orgânica morta. A ciência denomina-os, por este motivo, de plantas saprófitas (termo que deriva do grego sapros - podre e phyton - planta).



Também o despontar, no limiar do trilho, bem próximo da passagem de muitas botas, de um pequeno pinheiro-bravo, é motivo para nos determos a apreciar com alguma atenção a beleza do crescimento deste ser. Afinal, em tudo semelhante ao desafio da vida de todos os demais seres vivos, incluindo o homem, sempre perante ameaças constantes à sobrevivência.



Bem próximo desta forma de vida nascente, o corte transversal do tronco de um velho carvalho revela-nos a outra extremidade da linha da vida. Carpóforos em estrato vivem à custa da matéria orgânica em decomposição.




A humidade que caiu durante a noite ainda é visível sobre a folhagem das herbáceas que preenchem o substrato mais baixo do bosque.




Mas é o solo que retém o grosso da água que precipita, quer sob a forma de chuva, quer devido à condensação das neblinas nocturnas. Não admira, pois, a sua cor negra azeviche.



Pode-se afirmar, sem incorrer em grande erro, que os maiores inimigos da nossa floresta não são as pragas de insectos ou as doenças do arvoredo, mas sim, as espécies infestantes em que se destacam as Acácias-de-espigas (Acacia longifolia) e a Erva-das-pampas (Cortaderia selloana). 

Sobretudo a primeira, encontra-se implantada em toda a floresta ombreando com os pinheiros-bravos, enquanto a segunda, sempre que aparece destoa completamente no contexto florestal.

Enfim, imagens tristes, que não apetece registar!


A este propósito diga-se que, a uma floresta, como aquela em que nos encontramos, que surge pela intervenção directa do homem, se denomina de mata, enquanto que a uma floresta que surge de forma espontânea se denomina de bosque. Ambas, contudo, sofrem a ameaça destas espécies invasoras!


E o caminho põe-nos novamente em contacto com os líquenes; agora, estes seres surgem sobre as fortes raízes de um pinheiro, que conseguiram rasgar o solo.... lindos, sempre de um verde suave, pois a alga que os forma, assim os pinta. 




Refira-se ainda, a propósito destes organismos, que os mesmos servem de alimento a alguns invertebrados herbívoros e proporcionam abrigo a alguns insectos e aranhas. 

Também no solo, são vários os ramos caídos, alguns até atravessados no caminho como que obrigando o caminhante a observá-los à força. E o que vemos? Que cada um deles, mesmo já mortos, não deixam de proporcionar um suporte de vida para estas espécies .... os líquenes e os fungos, verdadeiros colonizadores da floresta!




Sabemos que a manhã vai solarenga porque alguns feixes de luz conseguem trespassar o dossel arbóreo, criando um ambiente de magia, que nos faz recuar no tempo, conduzindo-nos às histórias da nossa infância, em que gnomos, fadas e animais bravios, conviviam harmoniosamente na obscuridade interior do bosque. 



Como que correspondendo a este sentir, surge por entre a vegetação baixa da floresta, um pequeno ser, vivo, irrequieto mas muito discreto. Uma Carriça (Troglodytes troglodytes), atenta aos pequenos insectos que lhe possam servir de alimento.




Continuamos a caminhada ...

Por entre as muitas e muitas agulhas de pinheiro-bravo caídas, que acabam por cobrir a generalidade do solo florestal, bem húmido, surgem aqui e além mais e mais cogumelos ou macrofungos, como são conhecidos em ciência. 

Uns têm um pé bem diferenciado e terminado por um chapéu branco...




...outros, tão peculiares quanto os anteriores, apresentam o chapéu  de tons arroxeados...



Mas não são só os cogumelos que emergem deste manto de folhas picantes. Também pequenos exemplares de carvalho-alvarinho conseguem irromper à força!




À medida que prosseguimos floresta adentro vamo-nos deparando com situações imprevistas que nos obrigam a deter; desta vez, não por ter surgido mais uma forma de vida chamativa da nossa atenção, mas porque um grande tronco caiu, devido aos ventos fortes de dias anteriores, e ficou completamente atravessado no caminho, dificultando a passagem.



Não tivemos outra alternativa, senão, passarmos uma perna por cima do tronco e em seguida e do mesmo modo, a outra. E continuámos ...

O trilho em certas zonas está completamente alagado devido à maior proximidade do lençol freático. Além das dificuldades que implicitamente provocam à progressão, estes charcos de poucos centímetros, criam micro-habitats e mosaicos belíssimos no solo florestal.




Algumas centenas de metros após termos acabado de ultrapassar mais este obstáculo, um chamamento bem conhecido, vindo do alto, obrigou-nos a levantar a cabeça na esperança de observarmos a Águia-d'asa-redonda (Buteo buteo). 

Contudo, ainda tivemos que a ouvir uma segunda e terceira vez, antes da ave surgir no nosso campo visual. E foi por breves instantes, pois rapidamente voltou a ficar encoberta pelas copas dos pinheiros.



À margem do caminho, um tronco rachado ...  uma rachadela dificilmente produz um corte perfeito, simétrico ... desta forma, um tronco rachado nunca gozará do estatuto de sólido geométrico regular. 

Mas também não faz mal, porque assim, ele pode ser olhado como uma obra esculpida a preceito. E nesta escultura, que a natureza nos proporciona observar, os líquenes, de tonalidade esverdeada que brotam do tronco, parecem jóias incrustadas. 



A natureza tem destas coisas. Nisto está, também, a magia da floresta. 


Caminhar na floresta, como se constata, passa por um reencontro permanente com seres e formas antes conhecidas. Mas, a qualquer momento a floresta pode-nos surpreender com registos imprevisíveis. 

Foi o aconteceu quando o nosso trajecto chegou a pequena clareira no meio da floresta, onde na vegetação herbácea se deliciava um simpático Coelho-bravo (Oryctolagus Cuniculus), que assustado pela nossa aparição desapareceu em segundos, por entre o mato. 



Mais um encontro mágico!


A riqueza biológica de uma mata, normalmente inferior à de um bosque, está presente por todo o lado, mesmo quando por vezes assim não parece. É o caso da vida no cimo das grandes árvores, nomeadamente do pinheiro-bravo, que apresenta as suas ramagens muitos metros acima do nível do solo. 


Menos canoras no Inverno, são várias as espécies de pássaros, como os tentilhões-comuns (Fringilla coelebs), que passariam despercebidos pela pequenez e camuflagem, a um olhar menos atento.




Somos obrigados a nova paragem na caminhada. Os efeitos do temporal assim reclamam e nos dão mais um momento para reflexão.



É que para haver rejuvenescimento da floresta não basta haver Primavera. Antes desta estação surgir é preciso haver condições físicas para os novos rebentos desabrocharem e se implantarem. 

Por isso, o Inverno, com seus temporais de frio, gelo, muita chuva e ventos fortes, tem como missão  eliminar, como em qualquer outra comunidade de seres vivos,  os mais velhos e fracos, aqueles que não teriam hipóteses, na Primavera seguinte, de produzirem seres saudáveis e profícuos.

Esta árvore, que nos obrigou a deter a marcha, já não estava em condições de corresponder às exigências que a próxima Primavera iria exigir!



Envolvidos pelo dossel arbóreo que nunca nos larga e, pelo contrário, nos aperta cada vez mais, começamos a sentir algum calor, mas não de sufoco, porque a estação não o permite. 



A temperatura do ar subiu, é verdade, até porque a manhã está a chegar ao fim. Apesar disso, continuam a existir zonas de tal maneira densas na mata, que os raios solares têm imensa dificuldade em chegar ao solo.




Neste período do dia, a floresta parece ter emudecido, face às primeiras horas matinais. Os pássaros que antes se escutavam parece que se ausentaram para longe. 

Instalou-se na floresta, como que, uma calmaria aconchegante. Sabe bem, pois já vamos com alguns quilómetros nas pernas! 



                                                                                       (continua)


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