domingo, 24 de janeiro de 2021

Um dia de Inverno na praia (I)

Estar frente ao mar é como estar ligado a um balão de oxigénio!

Na verdade, quer nos encontremos numa praia de areia ou no alto de uma falésia, sentimos sempre o mesmo. Que o ar que respiramos é diferente, é leve, é revigorante, é gostoso. Parece mesmo, que nos entra pulmões adentro, de forma extraordinariamente fácil. Enfim, trata-se da inconfundível maresia!

Pois, hoje estamos em frente ao mar, numa praia de areia, que poderia ser bem extensa em ambos os sentidos, não fossem o esporão e respectivo enrocamento longilitoral localizados a cerca de dois quilómetros para norte do ponto onde nos encontramos, a quebrar essa continuidade.



Assim, além de não ser um areal a perder de vista, a praia também não apresenta uma largura significativa. É bem mais estreita, direi mesmo muito mais estreita, que há três décadas atrás, devido à retirada de areia pelo mar, promovida pela presença do sistema esporão/enrocamento, que a vai erodindo.

Estamos nas primeiras horas da manhã. O mar está agitado e o vento é de sudoeste e forte. A maré começou a baixar uma hora atrás, o que nos irá permitir transitar na praia com maior segurança. 


A esta hora a praia parece estar deserta. Mas não está, de facto.

Olhando para norte e apesar de alguma neblina matinal, observam-se pousadas numa cúspide da praia, enfrentando o vento húmido, tal qual sentinelas da mesma, um grupo de gaivotas que pela variabilidade de tons mostram pertencer a idades e espécies diferentes. 

Umas, com a parte superior das asas de cor negra e as partes inferiores brancas, correspondem a adultos de Gaivota-d'asas-escuras (Larus fuscus). Outras, com o dorso cinza-claro e as partes inferiores brancas, correspondem a adultos de Gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis). As aves que se mostram com tonalidades acastanhadas por todo o corpo correspondem a indivíduos do 1.º  ou 2.º inverno que poderão pertencer a qualquer uma das espécies mencionadas. 




Poderíamos ser tentados a concluir que a vida por aqui se resumiria a este grupo de seres, já que tão pouco se observam os habituais pescadores desportivos, dadas as condições adversas do mar. 

Isto assim seria, caso fizéssemos vista grossa sobre a praia, acossados pelas condições climatéricas pouco convidativas a uma estadia mais alongada no local. 

Um olhar mais atento, colocado agora no sentido oposto, permite descobrir na ante-praia, uma ave solitária, negra de plumagem e com bico comprido. Trata-se de um Corvo-marinho-de-faces-brancas (Phalacrocorax carbo), um invernante abundante nas zonas húmidas litorais.


O mar revolto de Inverno, é de grande respeito. Podemos avaliar a sua tremenda força de dois modos muito claros. 

Primeiro, na praia propriamente dita, ao escavá-la profundamente, retirando-lhe toneladas de areia e deixando-a com um perfil de grande erosão e de grande susceptibilidade aos galgamentos. 


Toda esta carga sedimentar removida da praia emersa é arrastada para o mar onde vai sendo depositada em locais, mais ou menos distanciados da linha de costa, originando a formação de barras submarinas.

Por outro lado, registamos esta força brutal do oceano quando olhamos para a pré-praia, onde ocorre a rebentação. Neste período da maré, no Verão, as ondas são baixas e quebram de forma suave; mas hoje, são altas e quebram com estrondo, dissipando enormes quantidades de energia e projectando no ar grandes nuvens de gotículas.



O perfil da rebentação tem a ver, não só, com a intensidade dos ventos ao largo da costa, frequentemente gerados a milhares de quilómetros da mesma, mas também, com a presença das referidas barras submarinas, as quais obrigam a onda a ganhar altura e a ter assim uma quebra mais pronunciada.



Enquanto fomos apreciando a dinâmica da praia, a linha de maré recuou mais alguns metros, conferindo maior conforto para nos deslocarmos ao longo daquela. Claro que, obrigatoriamente, o iremos fazer pela ante-praia! Daqui olharemos toda a praia propriamente dita e simultaneamente lançaremos um olhar sobre a duna  primária.


E é assim que damos início à nossa caminhada pela praia, seguindo para norte.

Um grande número de pequenas pegadas na areia, ainda húmida, diz-nos que muito provavelmente nos iremos encontrar com pequenas limícolas!



Nesta altura do ano é difícil encontrarmos vegetação pioneira na ante-praia mas em seu lugar encontramos um mar de lixo, arrastado pelas vagas durante a maré enchente. É o reflexo da nossa civilização, carente de boas práticas no consumo de bens e no destino final que dá aos resíduos. 




É no meio destas lixeiras a céu aberto que se escondem cadáveres de espécies marinhas, não muito fáceis de observar no mar, por voarem ou nadarem relativamente afastadas da nossa vista. As razões destas mortalidades passam quase sempre por fadiga perante um estado prolongado e adverso das condições de mar e de vento, por doença, por contaminação com hidrocarbonetos ou pelo enredamento em artes de pesca, quer activas ou perdidas na coluna de água. 

E nós, neste início de caminhada encontrámos dois destes casos.

O primeiro corpo pertence a um Alcatraz-nortenho (Morus bassanus), adulto. Esta espécie costuma pescar em grupo ao largo da costa durante o Inverno e por esta razão é comum ser encontrada arrojada na praia.



O segundo corpo encontrado pertence a um Boto (Phocoena phocoena). Esta espécie é comum nas nossas águas, pese embora na actualidade, indiciar quebras populacionais e ser considerada vulnerável.



A diversidade de materiais trazidos pelo mar alicia-nos a um olhar atento. E vale a pena, pois acabamos por descobrir, embora de forma indirecta, outros seres vivos do ecossistema litoral.

Aqui e além vão-se encontrando conchas internas de Choco (Sepia officinalis), um molusco da zona infra-litoral que vive sobre a areia. 



Agarrados a pedaços de madeira, a bóias de pesca ou a outro qualquer corpo que durante muito tempo flutuou pelo oceano encontram-se Perceves (Lepas anatifera).




Também muito frequentes na praia são as armadilhas utilizadas para a pesca do Polvo-vulgar (Octopus vulgaris). A sua configuração tem a ver com o facto daquele molusco ter por hábito refugiar-se por entre as rochas do fundo marinho.




O cordão dunar, que nos acompanha por nascente, além de apresentar cotas muito baixas, encontra-se rasgado por diversas plataformas de galgamento.

De facto, durante as sucessivas depressões meteorológicas que nos assolaram este Inverno, e sobretudo durante os momentos de preia-mar, o oceano entrou com tal ímpeto terra adentro que agravou ainda mais o estado já depauperado da duna primária.



O chamamento de um Verdilhão (
Carduelis chloris), pousado no cimo de uma acácia na duna primária, parece um incitamento a uma visita à mesma. 




Decidimos dar uma espreitadela à plataforma arenosa criada pelo galgamento.

Quando lá, constatámos que a água do mar havia chegado às acácias que revestem a depressão inter-dunar. No meio desta e a testemunhar a força dos galgamentos estava arrojado o cadáver de um golfinho-comum (Delphinus delphis). 




A manhã avança, enquanto o mar recua. 

Ambas as situações são boas para os nossos propósitos, pois quer a temperatura do ar, quer a largura da praia, aumentam um pouco mais.

Olhando o mar vêem-se Gaivotas-d'asas-escuras planando sobre a rebentação ...




... e para lá desta, flutuando sobre a água, alternadamente encobertos e descobertos pela ondulação, encontram-se Patos-negros (Melanitta nigra), num bando de algumas dezenas de aves.



Um chamamento de Cartaxo-comum (
Saxicola torquata) soando pelas nossas costas faz-nos rodar a cabeça para a duna primária. E lá está ele, um macho, no topo de uma acácia, olhando calmamente em redor.




Continuamos a caminhada sobre o areal da praia, acompanhando as linhas de material lenhoso indicativas das sucessivas posições da maré. 




À nossa frente, talvez a uns trinta metros, mais ou menos, descortinamos aquilo que parece ser o corpo inanimado de uma ave de tons muito claros. No local verificamos tratar-se de uma gaivota, pouco comum de avistar, dado viver predominantemente ao largo da costa. Trata-se de um exemplar adulto de Gaivota-tridáctila (Rissa tridactyla), morta recentemente.




Estamos quase a chegar ao enrocamento implantado a sotamar do esporão. É bem visível, agora, o desaparecimento total do cordão dunar, que era já antes muito fragilizado.




Os esporões ao impedirem o trânsito de sedimentos provocam no sector a sotamar, sector onde nos temos encontrado durante toda a manhã, uma erosão acrescida, provocando o emagrecimento da praia.




Também os enrocamentos, pela difracção das vagas que neles incidem, originam correntes fortíssimas que vão atacar a praia retirando-lhe muita areia.




Pelo areal vamos encontrando outros vestígios de vida marinha, como sejam as incontáveis porções de algas castanhas, arrancadas pela força das vagas às rochas onde se encontram fixadas.....




.... carapaças de Caranguejo-mouro (Carcinus maenas) ...




... conchas de diferentes bivalves, como a Ostra (Ostrea edulis), o Berbigão (Cardium edule), a Glycymeris bimaculata, a  Glycymeris Glycymeris ou a Lutraria lutraria.




... ou o longueirão (Ensis siliqua), entre outros.                     




Estamos agora junto ao esporão. 

Como o mar já recuou um bom bocado é possível observar, de perto, as Cracas (Chthamalus montagui) incrustadas nas rochas que foram postas a descoberto nos flancos daquela estrutura. 




Um pouco mais no sentido do oceano observamos, bem fixas às rochas, pequenas algas verdes (Cladophora sp.).




Os recursos que este habitat rochoso oferece constituem um verdadeiro pólo de atracção para as Rolas-do-mar (Arenaria interpres), que por aqui vão acumulando as tão necessárias reservas energéticas para a longa viagem que se aproxima, no sentido da tundra árctica. 




Deixámos para trás o esporão e prosseguimos caminho, junto à duna. É o meio do dia.

O abrigo que o edifício dunar oferece ao vento e a necessidade de retemperar forças levam-nos a uma paragem de reabastecimento energético. Enquanto por aqui permanecemos fomos brindados com os harmoniosos chamamentos dos Pintassilgos (Carduelis carduelis) e com os ainda mais insistentes do Chamariz (Serinus serinus). 

Na praia, próximo da linha de água, avista-se um enorme bando de pequenas limícolas acabadas de chegar ao local. Já tínhamos dado pela sua presença logo no início do percurso. Com o recurso aos binóculos confirmámos tratarem-se de Borrelhos-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus).




Por fim, retomámos a marcha, numa altura em que estamos em plena baixa-mar. Podemos, então, agora ir descendo na praia. 


                                                                                                                            (Continua)

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